Crónica / Opinião
Neste dia, há precisamente 46 anos deu-se a mudança de regime. Muitos não sabem o que é viver em ditadura, reduzido em liberdades, algumas, quase todas. Eu também não. E não quero saber, não tenho curiosidade de ficar privado dela. Sempre vivi num regime aberto, livre, e lembro-me da minha infância simples. Lembro-me das brincadeiras de rua, no meu bairro de moradias de quatro moradores, várias, alinhadas ao longo de meia dúzia de ruas, construídas por uma cooperativa de Lisboa. Lembro-me das ruas quase sem veículos. Da vida simples. Das pessoas vestidas com as mesmas roupas modestas todos os dias, os seus cabelos mal amanhados pelo pente, porque os cabeleireiros eram para famílias mais ricas. Brincávamos com coisas simples, uma bola de futebol, uma bicicleta, com berlindes, a saltar à corda ou a jogar à apanhada. Bebíamos Pirolitos para conseguir o berlinde que vinha no gargalo da garrafa. As mercearias tinham pouca variedade de produtos nas prateleiras, mas eram produtos “autênticos” com menos químicos nocivos. Víamos passar o camião das bebidas, a furgoneta dos gelados com a sua música irritante, o afiador com a sua gaita, o carteiro sentado na sua bicicleta, com malas de couro por cima da roda traseira. Foram tempos felizes da minha infância.
Com quatro anos apenas, mal compreendi a Revolução. Lembro-me de ir a Lisboa, à Praça do Rossio e à Alameda Afonso Henriques, à Almirante Reis, mas apenas em pequenos flashbacks. Lembro-me de ser pequeno e de só ver pernas de pessoas, de levar empurrões naquele mar de corpos apertados uns contra os outros. Lembro-me dos gritos, das canções, das palavras de ordem, dos tanques, das metralhadoras, dos militares, das fardas, dos cravos. Lembro-me de ver o meu pai, a sua cara, de alguém que tinha vivido algo que eu não tinha. Ele parecia interessado no que se estava a passar. Eu, na minha reduzida estatura pedia colo, e quando me agarravam, conseguia ver por cima das cabeças das pessoas o que se passava mais à frente, no palco da rua. Hoje quando vejo imagens a preto e branco da Revolução, é como se também as minhas memórias estivessem gravadas no meu córtex, a preto e branco. As cores apagaram-se com o tempo e os tons de cinzento foram substituindo lentamente o espectro original. Pouco tempo depois entrei no mundo do ensino e tive a felicidade de viver a realidade de uma comunidade pobre. Os meus colegas eram filhos de pessoas simples, mas autênticas. E essa realidade sempre foi a minha. Estava por isso, integrado. A Escola Primária, modelo dos Centenários do Estado Novo, era agora a minha segunda casa, onde o meu pequeno mundo se abria ao conhecimento padronizado obrigatório.

A população estava cansada de décadas de um Regime de Ditadura que foi enfraquecendo o povo, reduzindo-o à insignificância da vida rural, do silêncio, da subserviência perante o forte aparelho centralizado do Estado. Mas com o tempo, também o Regime se auto-enfraqueceu, porque quem abusa do poder, acaba por ser corroído por ele. E a idade e o tempo são factores que promovem a mudança. É uma Lei do Universo, uma da qual ainda temos muito de aprender. Vieram então as manifestações quase diárias, as canções de pop ligeiro, as canções revolucionárias, o “Grândola Vila Morena” tocada inicialmente na Renascença como segunda senha de código da operação militar do Movimento das Forças Armadas. Os cravos, os cabelos compridos, os gritos e o cigarro no canto da boca simbolizavam o poder da liberdade do Povo, dos mais pobres, que saiam à rua, já não assustados nem oprimidos, mas unidos, com os punhos no ar, eufóricos, sentindo a energia de algo novo, do momento de mudança a acontecer, ali, naquele momento e não noutro tempo qualquer. Uma revolução de amor e de paz, de um povo simples e trabalhador. Por isso quase não houve mortos a lamentar. O cravo que saía das metralhadoras dos soldados sorridentes, eram uma metáfora dos tiros e do sangue que não saíram das armas de fogo. Era vermelho de sangue, um forte símbolo para uma Revolução, para a posteridade. A cor de sangue vivo que corre nas veias do povo e no DNA de uma flor considerada menos nobre, mas para sempre imortalizada. A flôr do Portugal pós-Abril de 1974. A flor que substituiu a flor de Liz, monárquica, mais erudita, das famílias que dominavam durante o Estado Novo.
Em 2019 vi o filme “A Herdade” e gostei bastante. Uma perspectiva interessante do 25 de Abril, pelos olhos de uma família latifundiária que não acreditava na política do Regime. A narrativa, passada em três fases, revela os efeitos da política em três momentos distintos, antes, durante e depois da Revolução. E conclui-se que passadas quatro décadas de regime aberto, são os banqueiros, a economia agressiva e a corrupção o novo Regime de Opressão do povo. Aos poucos foram conquistando terreno, passo a passo, unindo-se secretamente em multinacionais e corporações cada vez mais poderosas, fazendo os políticos aprovar leis que os protejam e destruam os pequenos competidores, retirando-os da corrida por eliminação, tomando os bancos para seu benefício e expansão das suas estratégias devoradoras. Neste processo o povo enfraquece novamente, quase sem se dar conta, inundado nos seus problemas financeiros e dívidas, absorvido pelo mundo esmagador da informação digital. A liberdade entra por consequência, também, no mundo virtual. Mas mantém ainda um pé na realidade. Será que se vai manter assim por muito mais tempo? A manipulação das liberdades individuais por regimes opressores ocupou a maioria da história da Humanidade. Posso vangloriar-me de que vivi praticamente toda a minha vida num regime sem opressão política ou de ideais. Mas as minhas entranhas dizem-me que poderemos estar prestes a viver uma mudança, desta vez global, e que pode não envolver propriamente a liberdade individual na equação. Esta imagem de liberdade e felicidade pura, não tem preço. E da minha memória nunca a vou apagar. Mas quem não viveu este momento, saberá dar valor verdadeiro ao que ela representa? Ela, chama-se LIBERDADE…

Texto de Pedro. M. Duarte