Quinta dos Ingleses: Políticos e Construtores Ignoram Património Natural, Histórico e Cultural Único

A história documentada e conhecida do terreno da Quinta Nova de Carcavelos (também conhecida por Quinta de Santo António e mais tarde por Quinta dos Ingleses) remonta a meados do século XV. Segundo consta dos arquivos históricos, à semelhança de outras quintas da freguesia (Quinta do Barão, a de São Miguel das Encostas em Sassoeiros e a Quinta de Santa Maria do Mar no Arneiro), também esta propriedade junto ao mar, era utilizada para a produção de vinho mas uma sucessão de pragas infestantes (filoxera, míldio, oídio) a partir de meados do século XIX, levou à quase extinção da produção naquela área. Vendo a sua utilidade agrícola reduzida, os descendentes do proprietário (o Morgado da Alagoa) deram uma nova utilização histórica à Quinta Nova de Santo António, que assim acolheu, em fevereiro de 1873, a Estação da Companhia do Cabo Submarino do grupo Eastern Telegraph Company. A concessão inicial do Governo Português era para a sua subsidiária Falmouth Gibraltar and Malta Telegraph Company a qual garantiria a transmissão de mensagens telegráficas entre Inglaterra, Portugal, Gibraltar e Malta. Mas a posição estratégica do local acabou por atrair a sede do grupo empresarial.

Desta quinta nasceu a maior rede de cabos submarinos da época, que estabeleceram a ligação entre Inglaterra e Bombaím (Índia) e mais tarde, com os Açores, Cabo Verde e Brasil. A colónia de ingleses da empresa que se instalou na quinta acabou por dar origem ao cognome pelo qual esta é conhecida ainda hoje, dada a importância que esta comunidade teve na localidade rural da época. Da ocupação da quinta pela empresa de Cabos Submarinos restam ainda alguns edifícios: o Solar (ocupado pelo St. Julians School), o Queens building (antigo hospital) e os edifícios de escritórios e residenciais dos funcionários ingleses, implantados um pouco por toda a quinta. Esta comunidade acabou por trazer novos hábitos sociais, inovações tecnológicas e também a prática desportiva (futebol, ténis, rugby, cricket e ciclismo) para os quais construiu dentro da quinta, áreas apropriadas, em redor do solar (edifício central do Saint Julian’s School), de acordo com referências dos arquivos históricos do concelho e que constam no livro “Cascais 650 Anos de História” (págs 60/61). No site de Quintas Históricas da Câmara Municipal de Cascais ainda conseguimos encontrar leves referências históricas, mas a história detalhada da quinta que constava na página original da Junta de Freguesia de Carcavelos, foi apagada do novo site.

Av. Jorge V, deixará de ter a mata do lado esquerdo, para dar lugar a uma floresta de betão de 906 fogos

Em Abril de 2019, um grupo de cidadãos reuniu-se na Quinta dos Ingleses contestando este assassinato ambiental e cultural, que substituirá uma mata densa de pinheiros bravos, cedros, acácias, eucaliptos, choupos e arbustos endémicos por 906 fogos de habitação, um hotel, comércio, serviços e alguns equipamentos coletivos (escola básica, jardim de infância, centro de dia). A mega-urbanização vai ser massiva e ocupará a maior parte do solo, impermeabilizando aquele que antes era terreno livre e fértil para a vegetação natural. Totalmente indiferentes à problemática e políticas do Ambiente, a empresa proprietária Alves Ribeiro e o parceiro da empresa, o Colégio Saint Julian’s School, num momento da história da humanidade em que se debatem muito seriamente as questões de preservação da Natureza e do Meio-Ambiente, resolvem eliminar a maior parte da vegetação desta mata de 54 hectares, a única ainda existente na linha costeira Cascais-Lisboa, com uma situação altamente privilegiada e com enorme potencial para uma intervenção “mais verde” e mais interessante para a freguesia e para o concelho. O movimento “SOS Quinta dos Ingleses”, reivindica que pelo menos as zonas verdes existentes deviam ser preservadas e que a urbanização não deveria ser nem tão massiva nem tão alta, já que isso alterará o regime de ventos rasteiros (facto negado pelo Presidente da Autarquia) que fazem com que a histórica Praia de Carcavelos tenha desde sempre tido o maior areal da margem norte do Tejo entre a capital e Cascais (mesmo depois de truncada pela construção da Marginal, nos anos 40).

Fotografia do início do séc. XX, anterior à construção da Avenida Marginal, (foz da Ribeira – atual Praia dos Gémeos)
Fotografia do início do séc. XX mostrando a duna primária como prolongamento da vegetação natural da Quinta dos Ingleses

Segundo o movimento “SOS Quinta dos Ingleses”, quando em 2014 se discutia o Plano de Pormenor, uma parte do terreno podia ter sido expropriado, à semelhança do que foi feito no terreno da Universidade Nova de Carcavelos. Mas a Câmara de Cascais ignorou esta hipótese, aprovando a ocupação massiva do terreno com construção, para grande satisfação da empresa construtora, pelos direitos de construção garantidos há cerca de 40 anos. A nova urbanização trará pelo menos mais 2.100 moradores à zona, o que implicará cerca de mais 1.500 automóveis, e consequentemente mais caos no tráfego, sobretudo no período estival, às avenidas Jorge V e Tenente-Coronel Melo Antunes (do interface de transportes), bem como nas rotundas de entrada para a Av. Marginal. Para além do tráfego de moradores ainda o daqueles que se deslocarão às novas zonas de comércio e serviços vão gerar o caos nas rotundas, nas horas de ponta. Também o Colégio Saint Julians’s School verá aumentadas as suas instalações em mais 12.000 metros quadrados, o que provocará um aumento significativo nas atuais filas de trânsito nos horários de entrada e saída dos estudantes do colégio na Av. Jorge V.

Mas nenhum destes problemas parece preocupar a autarquia ou a empresa construtora. Também relativamente ao estacionamento de apoio à praia, além de não serem previstas novas zonas, vão ser anulados os parques provisórios criados há alguns anos no terreno da quinta, junto à marginal, os quais comportam algumas centenas de lugares, que desaparecerão com a nova urbanização. Durante o verão, por exemplo, podem chegar a estar estacionados cerca de 70 autocarros que transportam crianças à praia. Mas a grande perda será a nível da densa massa arbórea e vegetação endémica da mata, onde atualmente nidificam milhares de aves migratórias e que terá um forte impacto ambiental a muitos níveis.

O Presidente da Câmara Municipal de Cascais e a Presidente da União das Freguesias da Parede e Carcavelos, ambos do PSD, protagonistas fundamentais neste processo, e que se dizem amigos do Ambiente não conseguem, no entanto, ver estas evidências e ignoraram várias petições de milhares de subscritores. Antes pelo contrário, defendem a urbanização com toda a sua equipa, não parecendo ter grandes dúvidas quanto às “vantagens” da destruição deste património natural e histórico-cultural único. Destruição que a providência cautelar de setembro de 2019 não conseguiu travar. Apenas valeu uma forte moção de censura à Presidente da Freguesia: “o comportamento da presidente da junta de freguesia pelo que representa como traição do seu próprio mandato e dos valores democráticos que sustentam o poder local; […] Não tivera a presidente da junta de freguesia usurpado o poder deliberativo e abusado do seu poder de representação, o PPERUCS teria sido chumbado em assembleia municipal”.

A sua diversidade florestal e arbustiva é o último exemplo vivo da riqueza dos pinhais originais da orla costeira de Cascais.

Num artigo do Expresso de 10 de maio de 2014, o jornalista Miguel Sousa Tavares acusa mesmo o Presidente da Câmara de se esconder por detrás de decisões anteriores e de ostentar uma bandeira contra o betão antes de ser eleito, para agora trair os seus munícipes, não só não lutando contra decisões anteriores, mas ainda facilitando de forma mais rápida todo o processo da urbanização. Também o blogue “O António Maria” faz uma análise interessante do processo burocrático-administrativo da Quinta Nova ao longo da sua história bem como do Plano de Pormenor aprovado pela Camara Municipal. Por incrível que pareça, neste Plano de Pormenor é feita uma excelente análise histórico-cultural da Quinta, que é totalmente ignorada pela nova urbanização (páginas 12 a 17), visto que, à exceção do solar pertencente ao Colégio, todas as outras memórias construídas serão literalmente obliteradas. Nem sequer um centro interpretativo ou um pequeno museu serão construídos. Apenas se sabe que o novo hotel se chamará Wine Hotel em memória à original vinha.

E os vestígios arqueológicos existentes serão também quase na totalidade destruídos. Já em 2009 tinha sido realizada uma escavação arqueológica na zona oriental da quinta e foram encontrados vestígios cerâmicos, lâminas de pedra e pedras polidas, fundações de construções agrícolas (pequenos silos de cereais) circulares e retilíneas, vestígios mamalógicos e melacológicos que datam do paleolítico Superior/Epi-Paleolítico à Idade do Bronze e do Bronze Final, semelhantes aos encontrados no Cabeço do Mouro (Cascais), vale fértil aliás muito semelhante em topografia e vegetação a este, descritos e registados detalhadamente no relatório arqueológico final. O estudo concluiu que existiu um povoado disperso multifamiliar do “tipo casais agrícolas ou mesmo povoados abertos, que baseavam a sua subsistência na exploração intensa de carácter agro-pastoril ao longo de todo o ano, produzindo excedentes que seriam «comercializados». Entre os produtos largamente produzidos contam-se os cereais (trigo), que ultrapassariam as necessidades de
consumo destas pequenas comunidades, sendo frequente o aparecimento de estruturas de
armazenagem tipo silo”
.

A Marginal, acabada de construir, estabeleceu o corte definitivo da duna primária com a Quinta dos Ingleses.

Com a chegada da revolução industrial a Portugal, no final do século XIX, planeou-se a linha de comboio que ficou conhecida como a “Linha de Cascais” e que acabou por dar nome a toda a zona marítima da orla costeira do concelho de Cascais e mais tarde até à famosa expressão de “meninos da linha”, uma expressão popular que aludia ao status mais nobre e burguês dos filhos de famílias endinheiradas dos que ali viviam. Esta inovação tecnológica viria, no entanto, a determinar para sempre o limite das praias “da linha” a montante, limite mais tarde reforçado em algumas zonas pela construção da Avenida Marginal a partir de finais dos anos 30. Primeiro o comboio obrigou à demolição de todo o muro da quinta a norte. Mais tarde, a Avenida Marginal destruiu a duna primária da praia e separou para sempre a ligação natural entre o pinhal litoral e o mar construindo uma barreira intransponível. Durante os anos 70 e 80 foram sendo vandalizados os vários portões em ferro existentes no limite da quinta. Começaram os pique-niques, os incêndios, a poluição da mata. Mais tarde, nos anos 90 o alargamento da Estrada da Torre, junto à Marginal levou à demolição quase total de todo o muro nascente e até (inexplicavelmente) de uma das casas desocupadas de funcionários ingleses existente próximo daquele limite da quinta.

Nos anos 90 ainda, a remodelação da estação de comboios levou consigo a velha cancela existente no final da Rua 5 de Outubro e o tráfego passou a fazer-se por túneis. Mas com esta remodelação, uma parte importante da quinta junto à linha férrea foi expropriada e com ela desapareceu uma parte da mata, acácias, pinheiros e eucaliptos quando se abriu a nova Avenida Tenente-Coronel Melo Antunes, junto ao agora Interface de Transportes. Depois da construção desta nova avenida, a Feira de Levante passou do centro da vila para a quinta, provisoriamente, o que “justificou” o corte de mais uns quantos eucaliptos e pinheiros. Nos anos seguintes o proprietário Alves Ribeiro, foi “limpando” certas zonas e começou mesmo a instalar infraestruturas de saneamento, mesmo sem o projeto aprovado. Durante essa “preparação” do terreno, milhares de árvores foram cortadas e foram construídos os parques de estacionamento provisórios, de apoio à praia. A construção desses parques implicou a “limpeza” de quase todas as acácias e à destruição de todas as espécies endémicas arbustivas existentes nessa zona junto à Avenida Marginal. No seguimento das obras da Variante N6-7 de ligação da A5 à Marginal, cortaram-se milhares de pinheiros de grande porte, no maior corte de árvores já realizado até hoje no terreno.

A construção da Variante N6-7 em 2000 levou ao corte de milhares de pinheiros bravos de grande porte.

A história da Quinta dos Ingleses é por si só um dos maiores valores da propriedade. Nela existem vestígios arqueológicos desde o Paleolítico. Desde a Pré-história, pela sua excelente situação de vale fértil, junto ao clima temperado da costa marítima, serviu para a agricultura. Da produção e armazenamento de cereais da Idade do Bronze, à produção de vinho desde meados do século XV até 1870, esta propriedade cumpriu um papel importante para as populações que aqui se estabeleceram, desde tempos remotos. Até os ingleses respeitaram o seu “espírito do lugar” e as casas dispersas e zonas desportivas que construíram respeitaram sempre a sua integração e respeito pelo meio ambiente da envolvente, como aliás é típico na sua cultura, o respeito pela mãe-natureza. Daqui nasceram as primeiras ligações telegráficas por cabo ao resto do mundo: 3 cabos para Falmouth (Inglaterra), 2 para o Brasil, 1 para Gibraltar e outro para os Açores. Portugal, ou melhor, a Quinta dos Ingleses, pela sua excelente posição geográfica foi o ponto central desta rede. O solar da Quinta, hoje o coração do Saint Julian’s School, que tinha sido construído em 1730 por José Francisco da Cruz, Morgado da Alagoa e Tesoureiro de D. José I, uma excelente peça de arquitectura do Barroco tardio, ricamente decorado com azulejaria e tetos em estuque com motivos decorativos cromáticos de grande valor histórico e artístico, acabou por ser replicado na cidade da Horta (Faial, Açores).

Em 1893 a Família Real inaugurou a ligação com os Açores (Faial).

Mas nada da história da Quinta dos Ingleses interessa aos Promotores Imobiliários. A sua única preocupação é conseguirem fazer aprovar o maior número de metros quadrados para encherem os seus bolsos. Não interessa que neste momento, pelo mundo fora se discutam seriamente políticas globais para salvar o Meio Ambiente, as Florestas, a Vida Selvagem, as Alterações Climáticas. Enquanto que muitas instituições ligadas ao Ambiente e decisores políticos de países menos corruptos e sérios, têm sido parte da solução e não do problema, em Portugal, este tipo de crime ambiental, é aplaudido, defendido e até votado por unanimidade ou maioria na “pequenez” dos membros das Assembleias de Freguesia ou Assembleias Municipais. Colocar a economia à frente dos interesses da qualidade de vida da própria humanidade, far-nos-á mergulhar no período mais negro e tóxico da história da nossa espécie destruidora do meio-ambiente.

Neste caso, a destruição deste pulmão que poderia ser transformado numa zona urbana verde de excelência que realmente valorizasse a Praia de Carcavelos e a Grande Lisboa, os políticos locais, donos e senhores de todas as decisões neste território, optaram pela pequenez da sua visão não evolutiva, repetindo os erros do que de pior se fez no século XX: cortar todos os pinhais da zona costeira de Cascais e construir prédios de habitação, até não restar uma única árvore, uma única Quinta Histórica no concelho.

A Nova Urbanização com 906 fogos, vai levar ao corte da maioria das árvores, ou seja à destruição deste bosque único.

Texto de Pedro M. Duarte

Partilhar Artigo

Facebook
Twitter
LinkedIn
Artigos recentes
Inscreva-se no blog por e-mail

Digite seu endereço de e-mail para se inscrever neste blog e receber notificações de novos posts por e-mail.

Join 342 other subscribers
Número de visualizações
  • 1.224.742 hits

3 respostas

  1. Exmo sr.
    Fala-se tanto em providência cautelar, por dá cá aquela palha, não será de se avançar com uma?
    Cumprimentos
    Manuel Boavida

    1. Escrever com urgência a Comissão Europeia, Geral e Ambiente, para evitar esse desastre de mentes pequenas e de suborno a grande pelos construtores…. Só pode ser isso a teimosia dos dirigentes locais! Portugal, um jardim a beira mar plantado, cada vez menos.

  2. Querem destruir a beleza da linha e descaracteriza la em prol de euros..
    Se a zona tem o valor que tem é pela qualidade de vida que existe em zonas de menos cimento e mais natureza…pagamos o imi caro e temos direito enquanto moradores de querer manter o que faz parte do encanto da nossa localidade

Deixe o Seu Comentário!

Discover more from Casa das Aranhas

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading