Da luta política e civilizacional entre religião e a ciência

Houve tempos em que o marxismo e o catolicismo pareciam incompatíveis. Em algumas décadas tornaram-se compatíveis entre si. O mesmo aconteceu entre a ciência e a religião. O que as unificou foi o desejo de servir e de se servir do império. Já não são apenas as elites que usam o império. Criou-se uma cultura única produzida em sociedade, em particular pela escolarização e pela comunicação social.

Durkheim, acompanhando a lei dos três estados de Comte, tinha a ideia de haver uma relação de continuidade entre a produção de religião e a produção moderna de conhecimentos. Tal tese acompanhou a ideia de que o conhecimento, em particular o conhecimento científico, tornaria obsoleto o conhecimento religioso. A verdade consagrada cientificamente substituiria definitivamente os mitos e histórias de índole mitológica, à medida que a escolaridade se universalizasse.

Os factos históricos negaram a superação das sociedades modernas do estado teológico e metafísico por um estado positivo. Tal como o comunismo, ao contrário do que anunciava, se revelou reversível, também a ciência positiva, o conhecimento definitivo, se revelou incapaz de lidar com os problemas do nosso tempo, como o aquecimento global ou o retorno das ideologias nazi-fascistas, para não mencionar a continuação do uso das discriminações para fundar poderes anti-sociais e distorcer as finalidades das instituições em favor das elites.

Os protestos contra a ciência que serve as elites recomeçaram a ser feitos em nome de religiões que servem também as elites, embora de outro modo. A ciência, como a racionalidade e a democracia, está na defensiva e perdeu terreno nas últimas décadas, enquanto procurava democratizar-se. O desejo de conhecimentos dos movimentos operários em ascensão no final do século XIX foi transformado em reclamação de direitos especiais de empregabilidade e profissionalização por parte dos licenciados. Do lado da oferta, as conquistas de liberdade de expressão protagonizadas pelos mais inovadores intelectuais do século XIX foram substituídas pela indústria de publicação e avaliação tecno-científica, cognitivamente menos produtiva. Os investimentos crescentes em ciência servem os militares e as competições globais para hegemonizar a exploração da Terra e dos seus recursos, incluindo os recursos humanos, nas indústrias digitais, químicas, biológicas que alimentam as guerras.  

Desde a crise do petróleo e a revolução iraniana, nos anos 70, se vem observando a crescente relevância das religiões e dos fundamentalismos, inclusive na política. Após a falência do sistema financeiro global, em 2008, cuja finalidade era acabar com os estados e os impérios a partir da liquidez infinita, em 2019 a dogmática prioridade à política financeira foi substituída, num ápice, pela prioridade à política sanitária, à bio-política e à necro-política, ao estado de emergência declarado. Ainda não está claro se foi o medo produzido para dar cobertura ao discurso único, ao estado de excepção continuado, à guerra de civilizações, que atingiu as elites e as pôs em pânico, a começar na China e depois em todo o mundo. Ou se estamos a viver a continuação da mesma escalada da produção industrial do medo tacitamente organizados pela má consciência dissimulada dos sucessivos fracassos civilizacionais para dar cobertura e tempo às elites para se defenderem da sua incapacidade de corresponderem às promessas que a si mesmas fizeram: poder viver fora deste mundo, quiçá noutro planeta ou debaixo dos oceanos, abandonando ao seu destino o resto da humanidade.  

A moderna ideia de império racional, para o bem de todos, o império que aprendera a jogar jogos de soma positiva, construtiva, criativa, como no pós-guerra parecia ser possível realizar no mítico ano 2000, borregou. Hoje é claro que não substituiu definitivamente, como se imaginou ser o sentido da história, o império baseado na expansão da Fé monoteísta contra o resto do mundo. A ciência ao serviço das elites, expurgada de ideologias e de imaginação, a tecno-ciência, fortemente investida com tecnologias de ponta, na indústria automóvel, na química, na dependência da produção de utilidades para o mercado, incluindo a invenção de modelos de negócio capazes de excluir quem produz e quem consome, revelou-se ineficaz. É incapaz, por exemplo, para evitar a pobreza e a miséria, as guerras e a produção de lixo, e de manter o crescimento económico infinito. Não há ciência capaz de transmutar a natureza da física e da vida. A ciência, porém, tem sido capaz de reduzir as oportunidades de vida, tantas as espécies que se extinguiram e extinguem da face da Terra.

Os estados e as políticas, cada vez mais limitados pela unificação do império a nível global e pelo discurso único produzido industrialmente nas escolas e universidades, faliram com o sistema financeiro e, agora, com os serviços de saúde. Em Washington, na sede do império, a religião reclama a Terra Prometida só para si (Make America Great Again) em vez de só para as elites. Quem tenha fé, acreditam, salvar-se-á das contingências e riscos em que o império nos limitou. Imaginando uma distância de facto inexistente entre o reino de Deus (partido republicano) e o império das elites (partido democrata), de que Trump é o mono, o palhaço, o coringa, o bobo. O império continua a ser monopolista dos dois partidos em presença, um favorável à religião e ao irracional, à luta de classes, e o outro, agora vencedor nas eleições presidenciais de 2020, favorável à ciência ao serviço dos negócios, de que a guerra é o principal.

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