A polícia emergiu na vida política, de onde esteve (quase) sempre afastada, com as declarações do director da PSP à saída da sua entrevista com o Presidente da República recandidato ao cargo, a pedido deste. Falando em nome pessoal, segundo fez saber depois de atacado pelo governo para se conter na sua posição de subordinado, declarou o seu apoio à unificação das todas as forças policiais, sem que o Presidente da República viesse desmentir ter tido essa conversa “política” com o senhor director.
No século XIX e início do século XX, ser dirigente político implicava ter acesso a uma milícia disponível para defesa e ataque. Nas sociedades mais avançadas, as polícias são instrumentos de políticos em posições institucionais e não aliadas de candidatos presidenciais. “Casos de polícia” é uma expressão que significa coisa irrelevante para os debates políticos. A elevação do debate político, até por uma questão de boa educação, tem incluído a sobranceria e o alheamento do mundo do crime e dos processos criminais.
Nos últimos anos, uma das decisões políticas mais controversas dentro do estado foi a de saber se a Procuradoria da República e os juízes de instrução criminal poderiam ou deveriam tratar dos crimes de que os políticos estão indiciados. A independência da soberania dos tribunais, até então, esteve tacitamente limitada pela intocabilidade da classe política, livre de escolher arbitrariamente os beneficiários das suas políticas.
O Presidente Sampaio organizou um congresso das profissões jurídicas para reagir à degradação da legitimidade das decisões judiciais, sem consequências práticas. A discussão ficou-se por saber qual seriam as melhores formas de relacionamento entre os tribunais criminais e a comunicação social. O Presidente Silva declarou finda a crise do poder judicial e remeteu-a para onde nunca, na verdade, deixou de estar: o segredo de estado. Porém, o protagonismo político dos processos criminais começou a fazer-se sentir desde 2004, com o processo Casa Pia e a entrada de um juiz de instrução no Parlamento para constituir arguido um deputado. As fugas de informação dos processos crimes deixaram de ser apenas a respeito de casos de polícia e passaram a incluir casos de política, casos que envolviam personalidades até então inimputáveis. Criou-se em Portugal uma comunicação social tabloide que já era prática dominante no Reino Unido, pelo menos desde o tempo de Tony Blair. Em 2014, o jornal especializado, popular, “O Crime” cedeu à concorrência da comunicação social dominante. Fechou portas.
A discriminação social praticada pelas polícias e pelos tribunais criminais é evidente nas populações prisionais. Porém, há uma diferença das condenações e da aplicação de penas no pós-guerra e a partir dos anos 80, da lei proibicionista das drogas, um dos primeiros elementos das políticas de globalização ou neoliberais. Nos países mais desenvolvidos do ocidente, o número de prisioneiros era significativamente menor do que hoje. Mesmo numa ditadura, como a portuguesa, o número de presos era então menor do que é hoje, em democracia. Nas décadas de 50-70, a ideia de as prisões deverem ser abolidas assim os serviços de reinserção social estivessem a funcionar em pleno, ideia que fundou a Amnistia Internacional, tornou escandalosa a revelação da existência de um Gulag soviético. Era como se aqueles que aspiravam a um mundo melhor (os comunistas que se opunham à ditadura de Salazar) afinal fossem atrasados no respeito dos direitos humanos. O Presidente Carter tomou os direitos humanos e usou Solzhenitsyn, um denunciante das atrocidades cometidas nas prisões soviéticas, como bandeira de guerra na Guerra Fria.
Encurtando razões, quando os processos criminais, as prisões, as policias, deixam de poder continuar a ser segredos de estado (como o são ainda a respeito das prisões secretas da CIA, Guantanamo, a perseguição a Assange e Manning) e se tornam problemas políticos, debates públicos, quando as lutas pela autonomia entre os poderes político e judiciais e policiais surgem na praça pública, isso quer dizer que há mudanças telúricas que já estão em marcha. Caro leitor, eu sei que é um incómodo importante ser obrigado a sair do conforto do confinamento pandémico para dar atenção àqueles cuja vida está a ser destruída pela desorientação política e pelo estigma que qualquer forma de solidariedade para com os desvalidos merece geralmente (nem todos podemos comer bifes, não é?). Mas atenção ao que anunciou o director da polícia no palácio de S. Bento. Unificar as polícias sob o comando do mais alto magistrado do estado é a política que serve a protecção de qualquer ditadura que está a sentir-se necessária, infelizmente não só pelos que votam no Chega. Afinal, as elites portuguesas são frágeis e só a sua união (nacional) as protegerá da descapitalização e das dívidas que os portugueses estão incapazes de pagar, porque não têm mais empregos.