Fiquei em choque enquanto aguardava na fila à porta do supermercado e vi uma mulher dos seus 40 anos largar o carrinho de compras e tirar as suas luvas de silicone atirando-as com desprezo para dentro do mesmo. Enquanto caminhava para o seu carro, várias pessoas na fila chamaram-lhe de tudo, desde “porca” a outros substantivos que não posso repetir. Todos sabemos que o mundo está em stand-by à espera da cura para o Novo Coronavírus. Que muitas pessoas estão a lidar mal com o confinamento. Que até já houve divórcios, separações e, claro, violência doméstica. Mas comportamentos deste tipo não se podem aceitar em sociedade. Contaminar outros deliberadamente é crime. A falta de civismo generalizada devia, em casos como este, ter implicações para os próprios. Esta cidadã devia, simplesmente, ser impedida de voltar a fazer compras nesta loja.
Pela primeira vez na história recente o mundo tomou resoluções mundiais, de certa maneira, coordenadas pela OMS. Portanto, é possível o mundo criar plataformas de entendimento comuns, apesar das 6.912 línguas e dialetos falados neste planeta, por humanos. Porque futuramente ainda teremos de incluir as línguas faladas por diversas espécies de animais. E quem sabe um dia, se incluirão as linguagens das plantas e dos insectos. A Inteligência Artificial terá um papel nesse processo da tradução do pensamento das espécies, que poderá ser uma das chaves para a harmonia entre seres vivos. Até os vírus e bactérias têm a sua linguagem, mas nós humanos, no nosso egocentrismo redutor, raramente nos importamos com as outras espécies, que consideramos, sem excepção, inferiores. Os vírus, no entanto, são considerados por alguns cientistas como as formas de vida mais inteligentes deste planeta, pela forma como se adaptam, utilizam a matéria orgânica do hospedeiro e se propagam exponencialmente, demonstrando que gozam da mesma vontade inexplicável de viver, tão presente em todo o Universo.
Desde os primórdios da civilização, que se destacaram homens no coração das tribos que conseguiam ter uma perspectiva mais sensível às questões da Terra, das energias, das espécies, das doenças e do milagre da multiplicação dos humanos e dos outros seres vivos. Líderes que, por se dedicarem ao pensamento, fizeram talvez evoluir mais a sua inteligência e percepção sobre todas as coisas visíveis e invisíveis. Terão sido eles até a fomentarem o processo contínuo de expansão das nossas células cerebrais e da inteligência evolutiva do Sapiens. Os Xamanes ainda hoje, em muitas tribos espalhadas pelo mundo, são os líderes espirituais, lidam com a magia da natureza e dos deuses, evocavam histórias filosóficas dos antepassados e de outros tempos, falam de seres míticos e dos espíritos dos animais. Usando uma linguagem, por vezes, metafísica e técnicas de poesia, êxtase ou hipnotismo conseguem tocar nas almas dos seus ouvintes ou discípulos. Através de cânticos ritualistas criam uma atmosfera sagrada, evocam todos os espíritos e energias desta Terra, dos Céus e do Universo, para que falem com aos humanos e lhes comuniquem a sua sabedoria universal. Muitas das suas práticas envolvem curas e magias, porque no universo da inteligência de todas as formas de vida há algo comum: um espírito invisível, uma energia que nos liga a todas as coisas que acontecem à nossa volta, uma matéria invisível com poderes ilimitados. Mas para sentirmos e vermos com sensibilidade essa realidade, temos de ser despertos, realizar o ritual de passagem para o novo mundo da inteligência multidimensional. A Alegoria da Caverna de Platão.
Curiosamente, atravessamos tempos de contradição. Ao lado de uma super-tecnologia como nunca tivemos enquanto espécie, generalizaram-se comportamentos fúteis e egocêntricos que estão a arrastar a humanidade para um fosso de cegueira. Pessoalmente, acredito que a tecnologia pode ser benéfica para o futuro, mas a banalização da utilização do telemóvel, veio demonstrar que a tecnologia, por si só, não é motor de evolução. Pelo contrário. O excesso de utilização de tecnologia, sem um sentido evolutivo, mítico ou potencialmente utilitário por detrás, está a esvaziar de conteúdo, os cérebros das gerações mais jovens. O conhecimento está a dar lugar ao imediatismo da imagem, ao sorriso de plástico, ao parecer em vez de ser, ao consumismo global sem sentido, ao esgotamento dos recursos do planeta, a uma escala assustadora. Os Xamanes de muitas tribos, no entanto, não alteraram quase nada o seu modo de vida, porque o seu conhecimento passa de geração em geração. E eles sabem que civilizações nascem, crescem e extinguem-se. Mas que no fim, alguém sobrevive. E esses sobreviventes, serão o resultado do natural processo de auto-destruição da Natureza. E que serão eles, os poucos representantes e herdeiros da sua tribo ou civilização. Podem ser os mais resistentes às doenças, mas podem também ser os mais sensíveis às questões da vida. E as mulheres conseguem adaptar-se melhor que os homens. O futuro pode estar nas mãos do sexo feminino. Talvez por isso temos assistido à tentativa de movimentos de extrema-direita, em desespero, tentarem recuperar o machismo perdido da maioria das sociedades contemporâneas. A mulher simboliza desde o neolítico a fertilidade, a origem da vida.

Em 2019 a UE lançou, finalmente, uma Directiva que limita substancialmente o uso de plásticos de utilização única, com caráter de urgência, no seguimento de múltiplas campanhas de sensibilização de grupos e instituições ambientalistas. O excesso de poluição dos oceanos por embalagens e todo o tipo de materiais plásticos, está a interferir drasticamente com a sobrevivência de muitas espécies marinhas, que se debatem também com a pesca excessiva por parte da maioria das nações do mundo. A estupidez humana não tem limites. Poluímos os habitats e esgotamos até à exaustão as espécies das quais nos alimentamos. Contaminamos alegremente o nosso próprio alimento. Um estranho sentido tanático de viver. Já nada há de sagrado na caça ou na pesca. Parece claro que o afastamento do Sapiens da Natureza e do respeito tribal pelas outras espécies e pela Mãe-Terra, está a toldar o comportamento humano. Limitamo-nos a viver os nossos dias, sem pensar. Somos milhões a fazer o mesmo. E para nos alimentar criámos um exército de escravos os quais são pagos miseravelmente para alimentar a cadeia social global. Estes escravos, também eles, se limitam a repetir o seu dia-a-dia, na esperança de terem dinheiro no final do mês ou da semana para pagarem as suas dívidas. Não é a estes que temos de pedir a mudança, aos pobres que estão no final da pirâmide. É aos do topo, aos decisores. E este momento de paragem mundial pode ser uma excelente oportunidade de o fazer.
Quando a jovem ativista ambiental Greta Thunberg encheu páginas de jornais, revistas e tempos de emissão nas televisões em 2019, foi fortemente criticada por grupos institucionalizados para desacreditar ambientalistas. Milionários que possuem cadeias de televisão e que manipulam a maioria dos stream media, que tentam esconder a feia realidade da destruição do nosso único habitat. Greta foi eleita a personalidade do ano em 2019, pela revista Time. Ela foi apenas o vértice do iceberg dos grupos ambientalistas, a cereja no topo do bolo. Todo o trabalho que está para trás, feito por essas instituições, é trabalho de décadas. Todo esse trabalho de fundo, as manifestações, as iniciativas, tudo isso precisava de um rastilho, um detonador. E foi a pequena Greta, símbolo das gerações futuras, que lançou fogo à hipocrisia política das Cimeiras do Ambiente de Davos onde políticos e figuras influentes do mundo dizem que sim, mas colocando sempre os interesses económicos em primeiro lugar.
Greta empurrou a que a UE e alguns países decidissem pôr um fim aos plásticos de utilização única. Mais um forte golpe na indústria petrolífera já que os plásticos são derivados desta matéria-prima. Se 2019 foi um ano de vitória contra esta indústria poluidora, 2020 será o ano trágico do retorno. Por todo o mundo temos sido surpreendidos com a mega-poluição provocada por máscaras e luvas abandonadas no chão de parques de estacionamento de supermercados e centros comerciais, junto a caixotes do lixo ou simplesmente em qualquer lugar. Só os hospitais espalhados por todo o mundo, a primeira linha de combate à doença, produzem toneladas de resíduos de materiais de proteção, altamente contaminados. Se a estas toneladas juntarmos as toneladas produzidas por cada cidade do mundo, nesta fase pandémica, poderemos estar a falar de uma poluição ainda maior do que a anterior por plásticos de utilização única. É certo que a pandemia veio colocar como prioridade a utilização de materiais de proteção. Mas uma vez mais, o humano, veio provar que a sua cegueira e o seu egoísmo, não são aqueles que esperávamos de uma espécie evoluída no séc. XXI. São, pelo contrário, de um retrocesso civilizacional, próprio de sociedades em decadência. Já não são os países mais ricos a lançarem o modelo de desenvolvimento. São os mais pobres, porque são mais, e porque, através das baratas auto-estradas da internet, lançam a nova imagem de civilização. Uma civilização cujos padrões de exigência são muito baixos.
O que se conseguiu em 2019, é agora destruído pela selvajaria comportamental. Para além da poluição o inerente perigo de contaminação por coronavírus, ao lançar uma máscara ou umas luvas para o chão é um crime, porque põe em risco a vida de outros humanos e até de outras espécies. Mas em tempos de crise como o que vivemos, o velho ditado português explica uma parte deste problema: “em tempo de guerra não se limpam armas”. A outra parte, prende-se com o baixo nível educacional e civilizacional da maioria das populações. And guess what? Sobretudo na Ásia, em África e na América do Sul, toneladas deste lixo irão poluir diretamente os oceanos, revertendo todo o trabalho conseguido no ano passado. O novo coronavírus ainda nos pode ensinar a última lição de cooperação e civilidade. Mas para isso, temos de aproveitar esta pausa para instigar à mudança. O futuro, sem mudança, não será possível.

Texto de Pedro. M. Duarte