Como a crise das relações entre homens e mulheres está a ser aproveitada pela industria de tecnologia de forma a tomar de assalto o ultimo bastião de humanidade que nos resta…
O conto Pygmalion, adaptado por inúmeros escritores, mais notoriamente George Bernard Shaw, conta a história de um homem que se apaixonou por uma escultura sua. Esta história é fascinante por muitas razões. Uma das principais razões pela relevância continua do conto é que todos percebemos o quão difícil é encontrar alguém que nos completa, que nos traz felicidade, sendo que encontrar alguém com a qual podemos construir uma relação amorosa duradoura e fértil torna-se por vezes não somente difícil, mas para muitos, é uma mera ilusão.
As relações são difíceis, por definição. Mas fazem-nos crescer. E é o encontro com o oposto, com o que é diferente, e também com aquilo que nos traz desconforto, nos faz pensar e nos faz questionar quem somos e o que queremos, que simultaneamente dá um significado à nossa vida- é talvez aquilo que nos torna humanos.
Mas vivemos em tempos estranhos. E nestes tempos estranhos nem as arenas do amor e do sexo escapam ao desenvolvimento desenfreado da tecnologia. Primeiro, surgiram as aplicações que permitem aos seus utilizadores encontrar parceiros reais. Depois vieram os robôs sexuais. E mais recentemente, vimos a emergência de aplicações que permitem aos seus utilizadores ter um equivalente digital de uma relação amorosa.
Um cientista disse até recentemente que no futuro robôs poderão ter bébés.
A Gatebox, uma empresa Japonesa, está a desenvolver um assistente pessoal para casa que, ao contrário da Echo da Amazon ou da Alexa da Google, tem a forma de uma mulher. Esta mulher não só ajuda com tarefas, faz de calendário, entre outras coisas, como envia mensagens ao utilizador durante o dia. Estas mensagens tentam imitar mensagens que seriam enviados por uma companheira, e algumas das delas são bastante sugestivas, tentando claramente imitar o sentimento de cumplicidade e erotismo associados a uma relação real.
Relativamente ao conceito de ter uma relação amorosa com um sistema operativo, os filmes Her (2013) e Blade Runner 2049 (2017) chegam os dois mais o menos à mesma conclusão- se nos apaixonarmos por um robô, por um programa de computador, esse mesmo programa terá uma relação com milhares, milhões de outras pessoas- não haverá exclusividade. No filme Her (2013), a personagem principal apaixona-se por um sistema operativo, para depois se sentir traído quando se apercebe que o sentimento de ter encontrado alguém que o percebia verdadeiramente não passava de uma ilusão. Aqui o paradoxo é que os algoritmos por detrás das aplicações que todos usamos, os quais estão agora a ser adaptados a estes robôs que tentam substituir parceiros amorosos, conseguem simular a aparência de compreensão, de individualidade, até de intimidade e cumplicidade, mas rapidamente se torna evidente que não é mais do que isso mesmo- uma simulação, e portanto, uma ilusão.
Uma reportagem interessantíssima da BBC de 2013 falava de homens que usavam aplicações que simulam uma relação amorosa. É difícil ver a reportagem sem ficar com a impressão que os dois homens em questão se comportam de uma maneira particularmente infantil, e que as estas aplicações acabam por perpetuar uma incapacidade de enfrentar o mundo real e mais especificamente, neste caso, de enfrentar a dura realidade das relações, ficando depois também desprovidos dos benefícios que estas dificuldades trazem.
Estas relações virtuais tornam-se também como substitutos de relações amorosas que os seus utilizadores são incapazes de ter, ou podem até ser maneiras de compensar défices ou necessidades passadas que não foram cumpridas. No caso da reportagem da BBC, o homem dada altura até admite que a aplicação é uma forma de cumprir um desejo que não foi cumprido, neste caso, o de ter tido uma namorada nos tempos de adolescente.
Falamos muito, cada vez mais, de género, sexo, amor. Por vezes falamos bem, por vezes falamos mal. Por vezes daí advêm discussões interessantes e necessárias, por vezes acabamos por nos perder e divagamos por aí a discutir o sexo dos anjos. Mas talvez o grande problema é que temos evitado falar de um problema específico, particularmente gritante, particularmente urgente- a grande crise das relações entre homem e mulher. E na sociedade em que vivemos, em que todas as facetas da vida são subjugadas pela lógica da troca, ou seja, pela lógica do mercado, as relações amorosas deviam ser um oásis de uma vida cada vez mais pautada pelo economicismo exagerado. Mas nem as relações amorosas estão a conseguir escapar à influência crescente das empresas de tecnologia, e neste caso mais específico, da robótica avançada e dos algoritmos desenhados para nos perceber para depois nos prender em ciclos de vício de uso e captação de atenção. O resultado? Não sabemos ainda exatamente o efeito possível sobre a sociedade, sobretudo se a virtualização das relações amorosas se tornar a nova norma. Mas podemos especular que nos vai tornar em ser humanos mais padronizados, mais infantis, e menos genuínos, ou seja, a virtualização das relações tem o potencial de nos tornar… Menos humanos.