Ucrânia – uma oportunidade para o desenvolvimento bloqueado?

As guerras são frequentemente apresentadas como cadinhos de inovação social e novas tecnologias, como as que brotaram dos EUA e da União Soviética, vencedores da II Grande Guerra.

O Fórum Económico Mundial tem vindo a fazer um apelo ao “Great Reset”, como se faz com os computadores. A proposta é desligar (direitos humanos, democracia, liberdade ambulatória) e voltar a ligar, com as mesmas elites no comando. Algo não está a funcionar, mas há confiança de estar bem planeado.

Qual será o plano que não está a funcionar e não se sabe, ou não se pode revelar, o que está a falhar?

A União Europeia tem-se orgulhado de, com as Nações Unidas, ter coexistido com um período de paz (na Europa). É como se os Balcãs Ocidentais e a antiga Jugoslávia não fossem Europa, e o Kosovo não fosse uma invenção da NATO. E como se a União Europeia e a NATO fossem instituições contra as guerras e a extrema violência. Como se o Durão Barroso não tivesse servido de anfitrião à cimeira dos Açores, em 2003, que anunciou a guerra eterna contra o terrorismo sem rosto, mas com todo o aspecto de ser islâmico, copiando as Cruzadas e usando aliados para servir de inimigo, como se viu no Iraque, na Síria, na Líbia, no Afeganistão. Como se Freitas do Amaral e Mário Soares, logo na altura, não tivessem comparado o presidente americano a Hitler.

Cometeu-se com a Federação Russa o mesmo erro que se cometeu com a Alemanha derrotada na primeira Grande Guerra: a humilhação de povos cujas elites sabem como se armar para destruir militarmente a Terra não é racional. Como não foi racional o ataque terrorista às Torres Gémeas e a reacção das elites americanas, estimulando o nacionalismo histérico entre os “verdadeiros” americanos, os herdeiros dos escravocratas e genocidas que continuam presentes não apenas como más memórias na vida quotidiana naquele continente.

É claro que um crime é um crime: a violação do direito internacional não é por ter sido e continuar a ser violado quotidianamente que a oligarquia russa não é mais uma clique criminosa. Como sempre, as vítimas são apanhadas desprevenidas, ainda que estejam habituadas a ser vitimizadas de várias maneiras, e abandonadas. Pior do que isso, tornam-se motivo de condescendência cínica quando se organizam para se solidarizarem voluntariamente entre si em torno de um estado dependente de ser fantoche do agressor ou do falso juiz a trabalhar em causa própria.

O heróico Zelensky será sacrificado pelos militares e/ou pela história. Está a saber interpretar aquilo que une milhões de ucranianos e a construir um espírito nacional desejavelmente diferente daquele que tem vingado nas últimas décadas por todo o mundo, incluindo a Europa. É comovente a energia solidária de um povo mobilizado para enfrentar um desastre criado pela própria humanidade. O cinismo da humanidade que assiste é insuportável. Mesmo os dirigentes mais empedernidos se comovem. Querem ajudar, mas não querem (nem podem) entrar na guerra, que se arrisca a ser nuclear e está impossível de organizar por quem tem forte contestação à porta dos governos, nos EUA, na França, na Grã-Bretanha, todos a braços com uma crise financeira alimentada a triliões de dinheiro para a banca, desde 2010, e com a crise pandémica – que se não foi inventada veio a propósito para desmobilizar as contestações que, nem por isso, param. A maneira que as elites globais encontram para ajudar é contribuindo – como estão habituadas a fazer – para manter a guerra, estimulando a indústria de guerra, uma maneira de contribuir para o Great Reset na Ucrânia e talvez noutras partes do mundo.

As elites da China e da Índia, inovadoras em controlo de massas e em intensificação das desigualdades sociais, recebem com alívio este aviso europeu aos respectivos povos. Sigam-nos, não precisam de o dizer Modi e Xi, e vejam o que vos acontece.

As estatísticas vertiginosas mostraram que a sede do império estava já a fazer as malas de Washington para Pequim. As políticas anti-pandémicas mostraram os tiques miméticos dos líderes ocidentais em relação aos putativos novos super-imperadores. As culpas dos ainda dirigentes globais em relação às consequências ambientais das práticas seculares de exploração da Terra e dos seus recursos, intensificadas nas últimas décadas, obrigam-nos a pensar em economia verde, em transição energética, e fazer alguma coisa a esse respeito, quando o direito ao desenvolvimento noutras partes do planeta liberta as elites para continuarem a copiar as políticas ocidentais globalizadas.

A Rússia sacrificada e humilhada pelo falhanço do socialismo real e pela NATO, que a tornou um campo experimental do neo-liberalismo libertário conduzido por oligarcas, dividida entre viver em democracia – como o manifestam os manifestantes pela paz em terras do sr. Putin – e as saudades do orgulho nacionalista produzido na era soviética, vota maioritariamente na condução do antigo KGB que entende de relações internacionais e é partidário de regimes ditatoriais e fachadas políticas.

A clique de Putin sabe que as suas oportunidades de negócio estão a encerrar, com o ataque às energias fósseis em curso. Mesmo com os preços a aumentar, a autonomia futura do petróleo e do gás natural deixará a Rússia ainda mais pobre.

Os EUA e a Europa estão em decadência, mas imbecilmente orgulhosos da sua superioridade intelectual face ao resto do mundo. Estão a reindustrializar-se, reconhecendo a derrota na globalização por si promovida, e acreditam ter energias e imaginação para evitar a continuação das tendências em curso. Têm, por outro lado, o mundo todo cercado de bases militares. A Rússia de Putin, abandonada pelo ocidente, sabe que está só. Como um moribundo suicida, está pronta a levar o resto do mundo consigo.

Entretanto, a Alemanha, líder incontestada desde 2010 da União Europeia, decide dar um passo histérico, perdão, histórico: voltar oficialmente e sem limitações ao negócio do armamento militar letal. Como aconteceu quase sempre, a única ideia que as elites têm para acabar com a guerra é fazer a guerra.

Perante a comoção que dá assistir à mobilização de heróis que vão colocar-se ao lado dos seus entes queridos em nome da Ucrânia para serem sacrificados pela guerra que Putin ordenou e o ocidente não temeu, não previu, de facto provocou com intrigas e se propõe alimentar, está a ser usada pelos que mantém os negócios milionários de gás natural com a Rússia, através do Nord Stream 1, e querem fazer mais negócios, através do Nord Stream 2, para os diversificar, agora no sector militar.

Enquanto o presidente ucraniano se sujeita a confrontar-se com os negociadores russos na Bielorrússia, para fazer tudo o que pode para evitar mais guerra, os seus alegados aliados ocidentais mantêm o business as usual e fornecem meios militares letais.

A inovação tecnológica promovida pelo ocidente não é diferente da produzida pelo Kremlin: aquela que serve para matar e, assim, proteger a exploração da natureza (em esgotamento) e os recursos humanos (a serem desperdiçados por serem demasiado abundantes).

É hora de reclamar o decrescimento – que nenhum partido infelizmente propõe – a começar pelo decrescimento da indústria militar. É hora de reclamar o assegurar de condições dignas de vida para todas as pessoas no mundo, através de um programa de libertação da humanidade das humilhações  que todos temos vivido na qualidade de sacrificados recursos humanos para realizar a missão imperial mais irracional que alguma vez há memória: a expansão da Fé e do Império a todo o mundo, garantindo o direito de exploração da Terra e dos seus recursos humanos às elites locais, cada vez mais armadas de indústrias capitalistas que estão a destruir o meio ambiente em que a humanidade vingou.

Os impérios são vampiros dos seus inimigos, como a natureza, os trabalhadores, a sensibilidade cuidadora espontânea nas pessoas, substituída através da educação por fria racionalidade económica e profissional, os povos e as nações. A Rússia foi tratada como inimigo. Imaginou que a sua reconversão ao capitalismo – alegadamente anunciada em 1917 em Fátima, como segredo – seria recebida como o retorno do filho pródigo. Porém, não só morreram muitos milhares de pessoas por falta de abastecimento de bens essenciais como foram enganadas por sucessivos bandos de oligarcas que mantiveram o poder e mudaram as regras para se tornarem ricos.

Putin foi o primeiro na luta contra a corrupção, entre aqueles que a extrema-direita em ascensão no mundo lança para o palco da política. Juntamente com Trump, financia as organizações irmãs, ao mesmo tempo que se propõe desnazificar a Ucrânia.

Como membro do KGB, Putin sabe que a desnazificação na Alemanha significou a cooptação de muitos nazis para finalidades da República Federal Alemã e dos EUA, em diferentes partes do mundo. Por isso Putin apela ao golpe de estado militar na Ucrânia e espera ter ucranianos do seu lado, quando vencer.

Do lado europeu, como aconteceu em Constantinopla cercada pelos turcos pela última vez, faz-se o que sempre se fez: discute-se o sexo dos anjos, ou como acabar com a guerra promovendo e fazendo a guerra.

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Uma resposta

  1. Texto com uma análise muito lúcida e, concisa da problemática actualidade, das grandes razões de fundo que afligem a humanidade e que as elites responsáveis pelas errada escolhas ou opções na condução política dos povos a que se propuseram “oferecer” melhores condições de vida e de dignidade. Não esquecendo sequer (ainda que ao de leve) o problema do racismo estrutural das sociedades europeias que não conseguiram ver invasão (de territórios, povos e nações soberanas) enquanto não aconteceu na Europa!

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