Uma proposta de apelo internacional para boicotar a guerra

Esta proposta foi apresentada de forma privada a vários agrupamentos nacionais e internacionais. De nenhum mereceu andamento ou resposta. Talvez haja boas razões para assim ter acontecido, mas, para que não se diga que ela nunca existiu à face da Terra, aqui fica o seu registo público.

Contra o que seria a ordem natural da exposição, começo por apresentá-la em jeito de rascunho e só no final darei nota de alguns dos pressupostos que a sustentam.

Proposta de apelo ao boicote à internacional à guerra

  1. Não existem guerras boas e guerras más. Todas causam sofrimento, sobretudo nas camadas mais pobres e desprotegidas das populações. Todas merecem o slogan lançado pelos manifestantes de Lyon durante uma das Guerras do Golfo: «Les États jouent au golfe, les pauvres ramassent les balles».1
  2. As negociações de paz e outras manobras diplomáticas podem ser úteis à suspensão pontual do morticínio, à assistência humanitária e à preservação dos recursos naturais e económicos, mas não garantem o desarmamento nem o fim definitivo da guerra. Feitas as contas, servem sobretudo para os ricos e poderosos repartirem entre si os despojos da guerra, as matérias-primas e a mão-de-obra sobrevivente.
  3. Na fase actual do capitalismo, a guerra militar é uma mercadoria como outra qualquer. Melhor dizendo, não pode existir actividade bélica sem uma actividade económica específica: a indústria de material bélico e logístico.
  4. Os trabalhadores são a única entidade social que a longo prazo pode garantir o desarmamento universal e o fim da guerra. Basta que recusem continuar a produzir as mercadorias que alimentam a actividade bélica.
  5. Após as experiências coloniais, após as insurreições ocorridas durante as Guerras Mundiais, grande parte dos estados aprendeu a lição: deixaram de apoiar-se em exércitos constituídos por civis recrutados à força, à maneira de Napoleão, e investiram em forças armadas profissionais. Isto não significa que, em situação de desespero, não voltem a recrutar a população civil, como está a acontecer neste momento na Rússia e na Ucrânia.
  6. Atacar o aparelho industrial de guerra significa atacar o coração do estado, ou seja, o aparelho repressivo e militar. Podemos ter a certeza de que qualquer acção deste tipo despoletará uma repressão assanhada contra os trabalhadores envolvidos e suas famílias. Seria portanto irresponsável exortar os trabalhadores ao boicote da indústria bélica sem previamente ter planificado uma série de meios de ataque e autodefesa dos trabalhadores envolvidos.
  7. A indústria bélica, juntamente com o negócio da saúde/farmacêuticas e a produção clandestina de droga em grande escala, está entre as actividades produtivas mais lucrativas do Mundo. O poder dos interesses em jogo é directamente proporcional à quantidade de lucros obtida. Atacar a fonte de lucro (a produção bélica) é a condição necessária para pôr fim ao problema e criar uma nova ordem internacional.

Por todas estas razões, propõe-se um apelo ao boicote internacional à guerra.

As formas de levar a cabo esse boicote são inúmeras e devem ser decididas em cada região, caso a caso, em consulta permanente com as organizações populares e de trabalhadores, e em função da sua capacidade de mobilização. Podem ir de simples piquetes de protesto permanentes, até à greve com ocupação nas fábricas de material militar, passando por boicotes ao transporte internacional de mercadorias bélicas e logísticas2 – o único limite é a imaginação dos movimentos populares, que em inúmeras ocasiões deu provas históricas de poder ser surpreendente.

No entanto este apelo não pode ser lançado antes de estarem garantidas algumas precauções, nomeadamente:

  • Montagem prévia de um aparelho independente de propaganda e longas campanhas de propaganda nos meios de comunicação permeáveis, nas universidades, etc., contra a guerra em geral e todas as guerras em particular. Esta campanha necessita de fundos.
  • Criação de uma coordenadora internacional que, sem se imiscuir na autonomia dos movimentos sociais, seja capaz de os articular entre si nos momentos críticos.
  • Sondagem permanentemente à capacidade de mobilização em cada país, em cada momento, tendo sempre em vista que uma iniciativa extemporânea pode provocar uma derrota que implicaria o desânimo durante muitos anos ou até várias gerações.
  • Constituição prévia de um fundo internacional de greve e solidariedade, alimentado por crowdfunding de longo prazo. Este fundo deverá ter um volume suficiente para sustentar trabalhadores em greve durante longuíssimos períodos. Sem a garantia de um fundo de solidariedade, é aventureiro apelar a formas extremas de luta contra a produção bélica.3
  • Criação de um gabinete jurídico internacional para apoio e coordenação dos gabinetes jurídicos das organizações locais.
  • Outras iniciativas cautelares que sejam consideradas indispensáveis pelo colégio dos movimentos sociais.

Garantidas estas condições prévias,4 poderemos então avançar para o apelo ao boicote internacional à guerra.

 


Notas sobre alguns pressupostos do apelo

 

Acabar com uma discussão bacoca sobre o pacifismo

Entendo que o apelo à solução pacífica dos conflitos encontra os seus limites às portas do direito à autodefesa e à autodeterminação, quando já não restam quaisquer meios pacíficos de garantir a integridade e a autonomia do indivíduo ou dos povos. Quando digo «meios pacíficos», refiro-me a meios não bélicos, porque de facto a luta de classes no dia-a-dia é muito dura e violenta, ainda que os oprimidos, já de si tão castigados, assim não queiram.

Se desde a Conquista Global (teimosamente designada em Portugal pelo eufemismo de Descobertas) até aos anos 1960-1970 os povos oprimidos tivessem adoptado uma atitude pacifista radical, provavelmente ainda hoje estariam à espera que um anjo vingador viesse libertá-los do jugo colonial. O apelo às armas foi a condição necessária à libertação.

Por outro lado, o facto de a luta armada de libertação ter conduzido em muitos casos a novas situações de opressão deve-se à instituição de dois factores relevantes para o apelo aqui feito: o carácter mercantil subjacente à guerra, seja ela de opressão ou de libertação, e o carácter opressivo de todos os aparelhos militares, nomeadamente os do estado. Donde resulta que lutar contra esses aparelhos equivale a lutar contra algumas das formas mais violentas de opressão e contra o estado, tal como o conhecemos hoje. Quando tudo o mais falha no confronto do poder discricionário com a desobediência civil, o aparelho militar é o último garante do estado.

Durante mais de um século, a questão do pacifismo foi palco de polémica acesa entre facções de esquerda. Na minha opinião, não podemos retomar essa discussão nos mesmos termos que opuseram pacifistas ferrenhos a anarquistas revolucionários, leninistas, trotskistas, filósofos de várias cores e até algumas facções da Igreja que vêem no pacifismo «uma falácia bem construída para favorecer o mal e desarticular o bem»5.

Sucede que a História (pelo menos do ponto de vista marxista) não é um álbum de retratos estáticos e sem ligação entre si, mas sim um filme em constante movimento: as sociedades evoluem, as ideias rolam, as relações sociais metamorfoseiam-se … Se olharmos a História como um cliché, o debate sobre o pacifismo corre o risco de estagnar nos inícios do século XX. Compreende-se (ainda que se aceite a custo, como o fez Rosa Luxemburgo) que até uma certa época diversas tendências revolucionárias abominassem o pacifismo, que podia constituir uma barreira à luta contra os jugos mais opressivos e o colonialismo. Muitas dessas tendências ainda hoje teimam em fixar o olhar nas relações sociais e políticas típicas dessas épocas avoengas e por isso não admira que tendam a transformar-se em estátuas de sal.

Em épocas passadas – e lastimavelmente ainda nalgumas sociedades actuais – muitas coisas sucediam que nos parecem hoje absurdas ou até abjectas, como a pena de morte ou a negação da cidadania plena às mulheres. A nossa visão actual do patriarcado, do racismo, do nacionalismo, da relação com a Natureza pouco tem a ver com a de antanho; o que antes se considerava o mínimo necessário a garantir condições mínimas de reprodução social é hoje considerado insuficiente em muitas sociedades – as ideias de mínimos aceitáveis, de direitos universais, evoluíram (supõe-se que para melhor, claro está).

Estas evoluções não se devem a uma mudança na natureza física das mulheres, na cor das peles, no metabolismo humano, na orografia das terras ou na impaciência da Natureza. Devem-se, isso sim, a sucessivas transformações nas relações sociais, a um avanço das ideias e da consciência social e política, impelida pelos ventos da História, pelas lutas sociais, pelas variadíssimas contradições do próprio capitalismo. Temos por isso de redefinir as noções clássicas de belicismo, pacifismo e liberdade de consciência (esta legislada).

Isto leva-me a afirmar que não podemos admitir hoje a existência de «guerras boas» (geralmente as «nossas») e «guerras más» (geralmente as dos «outros»); ou, na versão religiosa, guerras justas e guerras injustas. Todas as guerras são prejudiciais aos interesses de quem nada mais possui senão a sua força de trabalho, isto é, dos 99 % da humanidade.

O poder mobilizador do trabalho unitário

Se não for possível organizar a luta contra a guerra de forma unitária, então mais vale desistir do apelo, porque ele descambará garantidamente em derrota. Dentro do campo progressista, a existência de várias facções de luta contra a guerra, cada qual fazendo campanha por seu lado e à sua maneira, que é como quem diz fazendo guerra entre si, esvazia a pretendida vaga de mobilização pela paz.

O trabalho unitário é particularmente difícil nalguns países. Porém, se com trabalho unitário já é difícil fazer frente aos interesses envolvidos na indústria da guerra, sem ele parece-me impossível. Por isso uma das condições prévias à campanha de boicote à guerra, ainda que não seja mencionada no corpo da proposta apresentada acima, é uma mudança de práxis, com a adopção voluntária de acções unitárias e um grau de tolerância mútua invulgar.

Mais além das metas imediatas

Apesar da longa e pertinente discussão sobre as limitações, os méritos e os deméritos das organizações sindicais e das comissões de trabalhadores, que já data da viragem do século XIX-XX, uma coisa me parece certa: quando essas organizações funcionam bem, os trabalhadores aprendem a organizar-se, alcançam um novo patamar de consciência social e política e tornam-se aptos a partir para mais altos voos.

Os representantes do Capital têm à partida uma enorme vantagem: há muitas gerações que aprenderam a planificar e organizar os meios de produção, a força de trabalho e as relações sociais, precisamente por estarem na sua posse – por assim dizer, já nascem com a escola toda. Por isso têm maior facilidade em tomar a iniciativa política e unir-se contra os seus opositores, mesmo que entretanto andem aos tiros entre si. Quem não possui meios de produção (e exércitos) é alheio à escola da planificação e tem grande dificuldade em ingressar nela. A alienação de que os trabalhadores são vítimas subtrai-lhes precisamente essa capacidade «natural». Não admira por isso que tantas vezes grasse nas suas fileiras o espontaneísmo inconsequente. A capacidade de planificar, organizar e unir é directamente proporcional ao grau de consciência política e social (e vice-versa6).

Por conseguinte, todas as experiências de organização, planificação e mobilização são preciosas oportunidades de aprendizagem para o campo do Trabalho. Também nesse sentido o apelo ao boicote à guerra, se for mobilizador, poderá constituir o primeiro de muitos outros passos no caminho para a liberdade, igualdade e justiça social. A organização para a luta contra a guerra será, em si mesma, um seminário de luta anticapitalista.

As dificuldades de mobilização e a ameaça de guerra generalizada

É sabido que os movimentos sociais se encontram em refluxo, ainda que nuns continentes mais do que noutros. Em Portugal, por exemplo, é extremamente difícil mobilizar neste momento a população para qualquer luta política; mesmo as reivindicações de carácter estritamente salarial tendem a ser frouxas.

No entanto, a dar-se uma escalada nos cenários de guerra que neste momento se desenrolam às portas da União Europeia e a entrarmos num cenário de recrutamento geral das populações nalguns desses países, quando virmos os nossos filhos, irmãos, pais, serem jogados como carne para canhão nas linhas da frente, é natural que as consciências despertem subitamente e comecem a gerar alguma capacidade de mobilização.

Nessa eventualidade, coloca-se a questão abordada mais acima: vamos responder de improviso aos acontecimentos, ou estaremos preparados, teremos planeado uma resposta aos poderes que nos usam como joguete? Será uma situação do tipo «Les états jouent au golfe, les pauvres ramassent les balles», ou estaremos preparados para fazermos os poderosos apanharem as bolas?

Na minha opinião, possivelmentemuito discutível, mais vale prepararmo-nos para um cenário favorável à mobilização, do que «corrermos atrás do prejuízo», sempre em desvantagem por não termos a iniciativa.

Quanto a mim, o risco de gastarmos energias a preparar uma acção que depois pode não ter seguimento nem oportunidade é muito menor do que o de não estarmos preparados para qualquer eventualidade.

Esta perspectiva de risco nitidamente não agradou às entidades a quem apresentei a proposta de apelo ao boicote à guerra. Aliás, a assunção de riscos é nitidamente uma das coisas que mais repugna à esquerda actual, ainda que (certamente de forma inconsciente) ela assuma por vezes os mais disparatados riscos em tentativas de aproximação ao poder instituído – correndo o risco, esse sim muitíssimo prejudicial aos 99 %, de se transformar no «bom gestor» do capitalismo.

 


Notas:

1 O trocadilho não funciona em português: os estados jogam o golfe/Golfo, os pobres apanham as balas/bolas.

2 Por exemplo, grande parte do fardamento norte-americano é produzido em Portugal, na região da Covilhã. Atenção!, não quero com isto insinuar que essas fábricas, que facilmente seriam substituídas por outras, noutro país periférico, devam suspender a laboração; pretendo apenas destacar o facto de, num mundo globalizado, as máquinas de guerra serem muito dependentes da produção global.

3 Devemos preparar-nos para aplicar tácticas semelhantes às usadas pelos grevistas ingleses numa certa época, quando pagaram aos trabalhadores polacos chamados a substituí-los para que estes também não trabalhassem ou nem sequer se deslocassem à Inglaterra.

4 A planificação e preparação prévia do boicote à guerra tem de comportar outras iniciativas que os trabalhadores fariam bem em não publicitar, de forma a não municiar os seus adversários.

5 Vanderlei de Lima, «Qual É a Diferença entre Pacífico e Pacifista?», 24/10/21, publicado em Aleteia.

6 A relação entre consciência política e capacidade organizativa é dialéctica; ou, como prefiro dizer à luz do saber científico do século XXI, obedece a uma lógica interna complexa multivalorada.

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