Humildade e orgulho – elucubrações sobre a guerra

Humildade e orgulho são sentimentos que organizam o feudalismo e o capitalismo, dois modos de viver o império e os sacrifícios que dão sentido à vida social e pessoal.

A nobreza de heróis, como Aquiles, conjuga o orgulho da glória eterna, confirmada por uma seta no calcanhar, e a humildade de não saber por que lutar, dada a miséria da política de então e, portanto, a falta de razão para a glória.

No desporto, também o orgulho voluntaria o desportista para tentar ser melhor, ou mesmo o melhor, independentemente de a quem serve, disciplina, clube, país, circunstância histórica. Como dizem os olímpicos, negando e confirmando a realidade, os jogos não devem ser perturbados nem influenciados pela política. Humildemente, os jogos servem qualquer política do momento, a que os autoriza e financia.

Na ciência, na verdade em todas as esferas da vida, os dilemas colocados pela opção de que dose de humildade associar ao orgulho existencial são estruturais. Nas ciências sociais, por exemplo, os profissionais debatem-se entre o realismo e a crítica, a adopção de critérios das ciências naturais ou das humanidades, as tecnociências ou o estudo dos substractos que fazem as pessoas diferentes dos outros animais (ciência centrífuga (Dores, 2021)).

Quadro 1. Doses de orgulho e humildade nas teorias das ciências sociais

Orgulho Humildade
Estrutural-funcionalismo Crítica Realismo
Teoria crítica Humanidades Ciências naturais
Políticas científicas Tecnociências Ciências centrífugas

 

Na Idade Média, a soberania e o império, eram vividos com humildade. Os rasgos de orgulho que a cultura moderna atribuiu aos senhores feudais resultam mais do seu olhar submisso e crítico burguês em relação ao modo de organização social medieval do que às vidas submissas, até à morte, dos aristocratas feudais, para manterem privilégios.

Segundo Hirschman (1997), a aliança aristocrática-burguesa fundou-se na divisão paulatina entre estado e economia, ambos separados da sociedade, da vida dos populares. O estado cumpre as missões repressivas e de dominação. Usa preferencialmente a violência. A economia não seria violenta. Ao invés seria livre e contratual, regulada por leis produzidas pelos interessados. As mudanças de regime feudal para regimes modernos, impuseram a ideologia, ainda hoje vigente, de a economia ser contraditória com o estado: as redes económicas serem, ou deverem ser, livres dos poderes abusivos, violentos, dos estados. O mundo livre, diz-se, é composto de sociedades abertas, protegidas por estados apenas fechados aos criminosos, aos estrangeiros, aos entendimentos com os inimigos.

De um lado e do outro da Guerra Fria, a democracia pluralista e a democracia popular acusavam os inimigos de não servirem os respectivos povos. Organizou-se uma competição de bem-estar manufacturado (Marcuse, 1991 [1964]) entre planeamentos público-privados, no Ocidente, e planeamentos unificados estatais, nos países socialistas, ganha pelos primeiros. A globalização que se seguiu à implosão da União Soviética, além de reduzir os salários no ocidente, prometeu acabar com a fome e a guerra, visto ter deixado de haver inimigos. Rapidamente, entre 2001 e 2003, ficou claro que o império não sabe viver sem inimigos, sejam eles os terroristas islâmicos, vulgo radicais, sejam eles, mais recentemente, os impérios emergentes resultantes das políticas de globalização, organizados nos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Os rasgos de orgulho feudais são típicos dos senhores da guerra, feudais ou modernos. Os imperadores, incluindo os estados modernos organizados hierarquicamente, a comunidade internacional, finge-se igualitária, como na Assembleia Geral da ONU. Na realidade, porém, as decisões estratégicas belicistas ou de solidariedade dependem das redes imperiais de mútua associação entre estados claramente hierarquizados. Quando as infra-estruturas falham, como aconteceu com a falência do sistema financeiro global, com as intervenções antidemocráticas e à margem da lei da União Europeia (para obrigar os países do Sul da Europa a resgatar os bancos falidos, em especial a Grécia cujo governo tinha ideias diferentes, ou para barrar o caminho a refugiados sírios, no Verão de 2015), com o sistema de saúde a não conseguir enfrentar a pandemia COVID-19, com as negociações de paz na Ucrânia entre 2014 e 2021, há que escolher que combinação de humildade e orgulho mostrar.

A humildade significa conservar o status quo e as situações de facto, como a respeito da Crimeia. O orgulho significa fazer uma avaliação holista da situação e auto-determinar-se a encontrar as linhas de rumo transformadoras que possam resolver os problemas a enfrentar.

Na guerra da Ucrânia, o governo de Putin, apoiado na maioria dos russos, manifestou o orgulho que tinha deixado de manifestar desde que a União Soviética tinha reconhecido ter perdido a competição da Guerra Fria. A União Europeia manifestou humildade rompendo com o fornecimento de gás da Rússia em respeito aos desígnios imperiais norte-americanos.

Para quem imagina, por influência da ideologia burguesa, que a economia, os mercados, o valor da liberdade, os lucros, o capitalismo, conduzem as estratégias dos estados e dos impérios, poderia ponderar perante a guerra. (Mas na maior parte dos casos, sobretudo nas universidades, a humildade de reconhecer intimamente que pouco se sabe conjuga-se com a cobardia que manifesta orgulho disciplinar, profissional, corporativo, perante os estudantes, para lhes ensinar como devem comportar-se no mercado de trabalho). Na guerra, a economia é um mero instrumento e os lucros são corrupção e saques, violação das leis e das pessoas.

Os aristocratas ou senhores da guerra são orgulhosos perante os seus inimigos e perante os povos, desarmados. São humildes perante os imperadores. Para eles é uma questão de honra, de manter a face, de vida ou de morte. Os empresários e políticos modernos, perante os seus povos, apresentam-se orgulhosos, alegando fazê-lo por serem seus representantes, em seu nome. Na comunidade internacional, claro, apresentam-se igualmente humildes perante os impérios. Impérios que modernamente perseguem a missão semi-milenar inventada pelos cristãos de explorar a Terra e os seus recursos até esgotar tudo, como se Deus fosse bombeiro e o fornecimento de bens essenciais estivesse garantido em caso de verdadeira escassez.

Os aristocratas feudais eram humildes perante Deus e a natureza. Sacrificavam-se pela sua honra. Os burgueses modernos são orgulhosos perante Deus e a natureza: imaginam que estes são pura imaginação, como o ciberespaço. Sacrificam-se organizando a (sua) humanidade para negarem as suas origens: a Terra e a evolução da vida.

Foi com evidente sacrifício da honra e do orgulho que os deputados europeus, enlouquecidos de humildade, votaram a classificação verde do nuclear e do gás natural, a coberto da guerra.

Referências:

Dores, A. P. (2021). Reeducar o século XXI: libertar o espírito científico. Lisbon International Press.

Hirschman, A. O. (1997). As Paixões e os Interesses. Bizâncio.

Marcuse, H. (1991). One-Dimensional Man ([1964]). Routledge & Kegan.

 

 

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