A discussão sobre o império, como a que envolveu Alberto Matos (artigo e resposta) e Mário Tomé, é de transcendente importância. É sobretudo importante quando envolve o leninismo – interessa-me no leninismo a profissionalização da política (adoptada à esquerda e à direita de forma generalizada) que caracterizou o século XX e se continua, sem denúncia das suas limitações. Será desejável que a discussão se aprofunde, de forma participada e alargada ao serviço de políticas emancipatórias capazes de reagir à perspectiva do Antropoceno, que estão, há que reconhecê-lo, longe do horizonte.
A minha contribuição sintética será para dizer que há um problema gravíssimo na confusão instalada a respeito da definição do que seja a política e o império. Essa confusão é cientificamente instigada pela separação disciplinar entre ciência política e relações internacionais. Na verdade, a separação fundacional de toda a hiperdisciplinaridade é bem evidente e especial e absurdamente rígida entre ciências naturais e ciências sociais. Por sua vez, o estado actual da ciência é apenas um dos reflexos da situação material, para usar uma expressão marxiana, do estado do império (sim, império em vez de capitalismo).
O império, o império moderno, estabeleceu uma radical separação entre a natureza (a ser anatomizada para melhor ser explorada) e a sociedade ungida por Deus – as elites – cuja função seria acumular aditivamente riqueza como demonstração prática da bênção divina, na análise de Max Weber sobre o que seja o espírito do capitalismo (a meu ver seria melhor designado espírito imperial). É ao império que as sociedades modernas organizam os seus rituais de adoração e submissão, nomeadamente através de sacrifícios de extracção a nível individual da força de trabalho como mercadoria auto-reconhecida como estranha às pessoas que deixamos de saber se ainda somos.
Esta perspectiva de análise permite compreender a inacção das sociedades civis actuais, muito agitadas, e com razão, mas desorientadas. Nós, as vítimas-cúmplices do império, esperamos das elites que sejam elas a abolir o império, orientando-nos para a saída airosa, tecnológica, democrática, em liberdade, contra todas as evidências. Isto é, os trabalhadores, os profissionais, os empreendedores olham para o céu, as organizações internacionais ao serviço das elites, a que os estados obedecem caninamente – sem alternativa, leninisticamente como profissionais fiéis aos seus empregadores – à espera de que o lobo se transforme em cordeiro ou o lobo mau seja, milagrosamente, a avozinha.
Para Mário Tomé, instintivamente, o império é norte-americano. Alberto Matos pergunta se não há outras nacionalidades igualmente imperialistas, nomeadamente na Europa? Nomeadamente aquela, a portuguesa, contra a qual a esquerda se bateu no tempo do fascismo, luta essa que foi favorecida pelas contradições entre o império português e o norte-americano na sua luta comum anti-comunista.
Para Alberto Matos o império é a elevação do critério de decisão dos capitalistas ao nível financeiro. Se se levar tal definição a sério, então a divisão do império (entre o actual e dominando pelo sistema financeiro global construído em torno dos BRIC e promovido pela China) é, entre aquilo que está a acontecer, a melhor oportunidade de reduzir a força do império e abrir campo a alternativas ao capitalismo (tese que Alberto Matos explicitamente rejeita, com razão). Essa parece ser a tese do PCP que Alberto Matos procura atacar, para a substituir por outra de apoio à Ucrânia, em nome da mobilização popular anti-imperial. É por isso que Mário Tomé lhe pergunta como se sente acompanhado pela extrema-direita. É de facto desagradável. Mas é esse o estado da esquerda profissionalizada: houve quem lhe chamasse o campismo. A opção de um lado ou do outro da guerra implica, necessariamente, com as estratégias financeiras de suporte às actividades partidárias. Isso é particularmente claro na Hungria e na Itália. Como é claro nas acusações objectivamente fundadas de ser a União Europeia que está a financiar parte importante do esforço de guerra russo.
A necessidade de destruição de capital cujo funcionamento se esgotou é global. As elites também estão à espera de conseguir encontrar, com apoio da ciência e da tecnologia, saídas controladas do beco sem saída em que se encontra a exploração da Terra. Estão convencidas de que é possível continuar a explorar a Terra – incluindo os recursos humanos – apesar do Antropoceno. Como dizem: não haver saída deve ser pensado como uma oportunidade para maximizar a exploração – como o império sempre fez por vício desde que foi inventado.
Aqui chegados, a pergunta é esta, dirigida à definição de império usada por Alberto Matos. Se o império é a financiarização do capitalismo, o famoso estado supremo do capitalismo de Lenine, o facto de as finanças estarem a enfraquecer o seu poder (nas bolsas e, muito antes disso, nas oportunidades de investimento) é sintoma de crise e de guerra contra os povos, ou melhor, contra a maior parte das componentes dos povos – aquilo que no século XIX se disse ser o proletariado, aqueles que tinham consciência de si como revolucionários. A pergunta é: onde está o equivalente actual do proletariado?
A pergunta a que a esquerda se escusa tentar responder por razões eleitoralistas é saber porque os descendentes do proletariado apoiam as guerras imperiais e a financiarização do capitalismo? Não são os partidos de esquerda que correspondem a esse apoio quando pedem aumentos de salário para que sejam os ricos a pagar a crise? Pedem arranjos financeiros que sejam mais favoráveis aos trabalhadores que fazem os impérios, o global e os nacionais? As esquerdas não podem ficar admiradas de não terem promovido (e continuarem a não promover) qualquer alternativa política nem ao império nem ao capitalismo. Não o fazem porque teriam de começar do zero, isto é, sem os apoios financeiros favorecidos pelos estados que permitem fazer política (pró-imperialista, como a pró-nacionalista) nas sociedades actuais.
A política americana mostra à evidência a solidariedade e as contradições entre globalistas e nacionalistas. A política chinesa parece ser muito mais consistente: são os vencedores da globalização e, juntamente com a Índia. Nacionalismo e globalização são uma só dinâmica imperial por estas paragens. São também os grandes contribuidores (a somar aos ocidentais) para que o Antropoceno seja em breve uma realidade.
A ideia de o império ser a financiarização é uma das armadilhas em que as esquerdas oficiais, profissionalizadas, leninistas, orientadas pelas ciências sociais, se embrulharam. Mas o império é outra coisa.
Como Alberto Matos reconhece, e isso é melhor do que o instinto de Mário Tomé, o império tem por actores vários estados, incluindo o russo e o chinês. Todos os opositores a tais centros de decisão imperial – concorrentes e aliados, ao mesmo tempo – lutam (desorganizadamente) contra o mesmo império. Como entre nós, caem na ratoeira do campismo, da profissionalização do activismo financiado para “libertar a sociedade civil”. Tal império, se for definido como financiarização, deixado a si próprio auto-destrói-se (como o capitalismo). Olhar para ele a destruir-se sem ter ideia do que fazer de diferente, a não ser procurar novas condições para voltar a fazer crescer a economia, voltar ao normal, voltar ao estado social, deixar de comer carne e de andar de avião, e outras perspectivas saudosistas e mistificadores, foi e continua a ser o calcanhar de Aquiles das políticas anti-imperialistas. A profissionalização das sociedades modernas e a omissão do reconhecimento da reprodução em modernidade das sociedades de ordens (estratos sociais com diferentes estatutos jurídicos) são elementos das redes que nos mantém vítimas-cúmplices do império, isto é, daquilo que une as belicosas elites de qualquer dos lados das guerras. Prova disso é o campismo, a escolha do lado da guerra em que apostar que divide as famílias, as organizações, os partidos, as sociedades, os movimentos sociais.
O império é um modo de organização de relações interpessoais que escalou, por milénios, até às aristocracias medievais europeias. Os Descobrimentos instalaram uma missão imperial (expansão da Fé e do Império) que ainda hoje orienta as elites ocidentais e mundiais para explorarem a Terra e os seus recursos, incluindo os seus recursos humanos (escravos, assalariados, profissionais, empreendedores das plataformas). O capitalismo – e a banca – são instrumentos do espírito imperial: surgiram em forma de sistema por interesse das elites imperiais modernas que os controlam, ora para os promover ora para os destruir, em função dos interesses de classe que são os seus: acumular riqueza como um vício.
O espírito imperial vingou primeiro nas cortes aristocráticas europeias e, por erro de cálculo dos ideólogos anti-capitalistas, penetrou nas classes trabalhadores através do orgulho do trabalhador por servir a missão imperial de exploração da Terra e da sua própria força de trabalho. O espírito imperial está hoje generalizado. É incutido nas escolas, com a colaboração das famílias e irreconhecível como artificio estranho e diabólico que nos põe a trabalhar para os nossos donos, a quem idolatramos, mesmo quando os maldizemos.
O velho Homem-Novo revelou-se imperial e está, com o império e o capitalismo, num rumo suicidário que parece inevitável, dado os vícios imperialistas estarem incorporados nos povos. Como os russos e os ucranianos que estão orgulhos dos respectivos países, ainda que em modo de deserção ou a combater contrariados, aspiram a subidas das respectivas nacionalidades do ranking imperial das nações. Os povos que assistem à guerra preocupam-se com o mesmo: como subir no ranking, incluindo os sacrifícios que são indispensáveis para tal, por exemplo, trabalhando mais pelos salários disponíveis em perda e em pobreza energética.
O império é os EUA, a globalização (financiarização neo-liberal) em transição para a sede em Pequim ou um estado de espírito milenar que foi democratizado num processo semi-milenar que todos estamos obrigados a adoptar quando nos expressamos (porque a cultura aprendida nas escolas e nas universidades nos prende à missão imperial em curso e em crise)?
2 respostas
Conquanto os comentários de António sejam pertinentes, oportunos e bem fundamentados, parece haver uma certa relutância em reconhecer alguns factos cruciais. Sim, a pergunta final engloba grande parte dos vectores da questão, e devemos vê-los a todos como elementos constituintes, em vez da ideia de que uns excluem os outros.
A meu ver, um dos aspectos em falta na argumentação do António, tem a ver com a “vocação” hegemónica assumida pelos EUA, sobretudo no pós II Guerra, altamente potenciada pelo acordo de Bretton Woods. Essa caça ao domínio global que inclui a nota verde, as muitas centenas de bases espalhadas pelo mundo, o uso da força bruta ou soft contra todos os países que recusem conformar-se, o controlo de todas as instituições globais, sanções arbitrárias, controlo férreo dos media, as maiores máquinas de propaganda que mergulham o mundo no discurso único e toda uma infindável série de outros mecanismos, fundações, gestão de fundos, NATO, monopólios, estados-satélites, etc, é sim a concretização do império.
Isto para dizer que sim, o império americano existe mesmo, é concreto, embora em nítida decadência, já conseguiu submeter a totalidade da Europa e pretende submeter igualmente os seus rivais principais, como a Rússia e a China, embora todos saibam que não irá conseguir, pois esses colossos não são a Líbia nem o Afganistão.
O império chinês é de uma natureza bastante diferente, encontra-se em fase ascendente e tudo indica que vai ultrapassar o decadente rival yankee.
Para o ponto em discussão, não me parece muito construtivo nem objectivo assimilar os vários impérios como se fossem um só. Tal como o capitalismo se tem vindo a subdividir em vários capitalismos diferentes e até conflituantes. É verdade que a mentalidade, a cultura consumista, o complexo de superioridade e outros atavios dos impérios criam um inconsciente colectivo favorável à sua manutenção.
Tendo no entanto o capitalismo chegado ao ponto de ruptura que conduz à barbárie prevista, alargam-se os movimentos e iniciativas de base que procuram desconstruir o sistema, enquanto as instituições tentam a todo o custo conter a maré. É ver como por todo o lado, as centrais sindicais tentam limitar os danos com acordos humilhantes com governos e patronato, forçando as massas a contornar essas limitações.
Por outro lado, a natureza está a dar sinais muito claros e fortes de que o regabofe tem os dias contados.
Sim, um outro mundo é possível, é desejável e muito necessário.