As Dinâmicas Pouco Discutidas da Invasão da Ucrânia e a Perspicácia de Orwell

Sejamos claros- a invasão Russa da Ucrânia é criminosa, moralmente aberrante e politicamente oportunista. Mas mesmo assim sendo, ainda há toda uma série de apontamentos e análises a fazer que não estão a ser feitas pela maioria da comunicação social.

Uma das razões pelas quais não vemos muitas críticas e análises necessárias é por causa do estilo em que nos acostumamos a ter debates sobre eventos políticos importantes. Hoje em dia qualquer análise para além do pânico moral, que neste caso é dizer o mais alto possível “o Putin é mau!” É vista como sendo equivalente a “apoiar o Putin”. O facto de qualquer tipo de análise política digna desse nome resultar em acusações falsas é em si um sinal extremamente preocupante, nomeadamente, de que há uma internalização e regurgitação de propaganda política altamente superficial, o que por sua vez é é em si um sinal de uma degeneração socio-política-intelectual num estado já avançado.

Esta falta de pragmatismo e o refúgio constante em actos meramente teatrais e simbólicos, é uma parte integral da degeneração política do Ocidente. Zero pragmatismo, zero análise geopolítica ou histórica- tudo revolve à volta de histeria ético-moral sem bases filosóficas para tal sequer. É penoso.

E claro, esta tendência para se refugiar no pânico ético-moral choramingão altamente teatral e performativo já chegou aos mais altos níveis da “liderança” política, que ao fazê-lo, paradoxalmente, cessa então de ser liderança e passa a ser mais um elemento de confusão e fraqueza. O melhor exemplo disto mesmo é a presidente da Comissão Europeia, von der Leyen, passar o tempo a fazer queixinhas da “chantagem energética do Putin” quando ela própria depois se gaba de atacar a Rússia usando sanções económicas e financeiras. Ora se apresenta como uma mestre da realpolitik, ora se torna numa bebé chorona que implora pela piedade do seu inimigo. E depois torna-se obvio que estão a perder a guerra, mas a cada semana declaram-se vitoriosos e garantem que o Putin já perdeu. Desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia que ouvimos analistas políticos e militares no Ocidente supostamente credíveis a garantir que Putin já perdeu, ou que está a duas semanas da derrota. Mas se já perdeu, então porque é que a guerra já dura mais de um ano?

Vamos então falar de alguns dos pontos mais controversos, mas necessários, relativamente à invasão da Ucrânia, focando-nos então em três pontos, sendo eles os seguintes:

1. Os paralelos óbvios entre a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 e a invasão da Polónia pela Alemanha Nazi em 1939, 2. Como a invasão do Iraque pelos EUA em 2003 abriu as portas a invasões como aquela sofrida pela Ucrânia pela Rússia em 2022, e 3. O papel perverso da NATO na guerra da Ucrânia e a sua natureza perversa e Orwelliana.

  1. Comecemos então com os paralelos óbvios entre a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 e a invasão da Polónia pela Alemanha Nazi em 1939.

Ora, este pretexto para a invasão da Ucrânia é só isso, um pretexto, visto que se o verdadeiro objectivo fosse a “liberação” das províncias separatistas e das suas populações que falam Russo, então a Rússia teria só invadido essa porção menor da Ucrânia, e não a Ucrânia inteira e a sua capital, que é o que acabaram por fazer… Exatamente da mesma forma como Hitler não somente invadiu Danzig e o corredor entre a parte principal do território da Alemanha, mas acabou por invadir e ocupar a Polónia inteira. A maioria das pessoas desconhece a centralidade da disputa territorial de Danzig como fundamento (ou seja, uma desculpa esfarrapada de Hitler, mas a qual foi necessária para convencer o povo Alemão da necessidade da mesma) essencial para a invasão da Polónia em 1939. Ora, Hitler justificou a invasão da Polónia dizendo que estava a ir ao socorro da população Alemã que vivia ou dentro de território Polaco, ou que vivia em Danzig e os territórios adjacentes, território que pertencia oficialmente à Alemanha (por ser uma parte fulcral da velha Prussia) mas que se encontrava naquela altura rodeado por território Polaco.

Ora, era verdade efetivamente que houveram vários incidentes em que a Polónia não respeitou o suposto corredor entre Danzig e o território Alemão principal assim como houveram efetivamente vários incidentes em que Alemães étnicos foram maltratados e oprimidos tanto em Danzig como na Polónia. O paralelo aqui é que Putin usou os incidentes reais de opressão contra populações etnicamente Russas tanto em território Ucraniano não-disputado, como por exemplo a decisão de banir do Russo nas escolas, como em regiões Ucranianas que têm uma parte considerável da população que quer a independência, fortalecidas pelo reconhecimento de Putin em Fevereiro de 2022, para justificar a invasão da totalidade do território Ucraniano, exatamente como Hitler fez com a Polónia, invadindo todo o seu território usando o pretexto inicial de ir ao socorro somente das populações Alemãs a viver na Polónia e para resolver a disputa territorial de Danzig.

  1. Vamos agora falar de como a invasão do Iraque pelos EUA em 2003 abriu as portas a invasões como aquela sofrida pela Ucrânia pela Rússia em 2022.

Uma outra componente da propaganda Russa para justificar a invasão da Ucrânia é a ideia de que estão a liberar a Ucrânia de um regime dirigido por perigosos Nazis, campanha propagandística que parece ter hoje em dia menos protagonismo, mas que no início era ilustrada pela letra “Z”. Ora, os paralelos entre as justificações para a invasão da Ucrânia para supostamente a liberar de um perigoso regime Nazi e a invasão do Iraque para supostamente o lieberar de um perigoso regime com armas de destruição maciça são óbvios.

Diz-se que a Liga das Nações colapsou por causa da sua incapacidade de impedir e intervir a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Ora, se a capacidade de impedir invasões militares fosse um critério usado para medir o sucesso das Nações Unidas, então esta já deveria ter sido desmantelada várias vezes. A invasão criminosa do Iraque em 2003 pela coligação liderada pelos Estados Unidos da América foi talvez o exemplo mais doloroso da incapacidade das Nações Unidas de intervir no que toca a invasões militares. Mas essa invasão, assim como as outras muitas invasões lideradas pelos Estados Unidos da América, não só aconteceram, mas levaram a guerras civis e ocupações militares que duram anos e décadas, sem que as Nações Unidas pudessem fazer algo sobre isso, e sem que os países invasores sofressem consequências reais e profundas como consequência das suas ações militares agressivas. Ora, isto envia um sinal muito forte à Rússia- vivemos num regime global em que países mais fortes podem invadir países mais fracos sem sofrer consequências duradouras.

  1. Finalmente, vamos analisar o papel perverso da NATO na guerra da Ucrânia e a sua natureza perversa e Orwelliana.

A Casa das Aranhas já tinha publicado, de forma presciente, uma análise da guerra na Ucrânia em Outubro de 2014, naquela altura sendo a guerra ainda uma guerra civil, guerra que apelidamos de Guerra Orwelliana no nosso artigo “Ucrânia, Mais uma Guerra Orwelliana”. E a recente confirmação que a NATO vai continuar a apoiar o esforço de guerra Ucrâniano mas sem nem a deixar aderir à NATO nem sequer lhe dar uma data para entrada futura corrobora a teoria que desenvolvemos em 2014: que a Ucrânia é um território intermédio usado de forma cínica por duas superpotências que têm acordos tácitos ou implícitos que faz com que nunca entrem em guerra direta, usando somente os territórios entre si para disputar as suas guerras.

Vamos então aqui somente reproduzir trechos desse artigos, que infelizmente não somente continua atual, como se tornou ainda mais atual como resultado da invasão Russa:

“O recente conflito na Ucrânia demonstra mais uma vez a perspicácia de Orwell na análise geopolítica, sendo este conflito uma Guerra Orwelliana em toda a linha.

Aqui estão algumas passagens escolhidas do capitulo II, parte 9 do romance 1984, que explicam a natureza da Guerra Orwelliana.

“Para compreender a natureza da guerra atual – pois, apesar do reagrupamento que ocorre a cada poucos anos, é sempre a mesma guerra – deve-se perceber, em primeiro lugar que é impossível para esta guerra ser decisiva

“Na medida em que a guerra tem uma finalidade econômica direta, é uma guerra de força de trabalho…

“É para a posse dessas regiões densamente povoadas, e da camada de gelo do Norte, que os três poderes estão constantemente lutando. Na prática, nenhum poder controla toda a área disputada. Porções dela estão constantemente a mudar de mãos, e é a oportunidade para aproveitar este ou aquele fragmento de terra através de um golpe súbito de traição que dita as mudanças intermináveis ​​de alianças…

Os habitantes dessas áreas, reduzidos mais ou menos abertamente à condição de escravos, passam continuamente de conquistador a conquistador e são gastos como tanto carvão ou petróleo na corrida à produção de mais armamentos, da captura de mais território, do controle de mais força de trabalho, à produção de mais armamentos, da captura de mais território, e assim indefinidamente. Note-se que a luta nunca vai além das fronteiras das áreas disputadas 

A guerra, portanto, se avaliada pelos padrões de guerras anteriores, é meramente uma impostura. É como as batalhas entre certos ruminantes, cujos cornos são incapazes de infligir ferimentos mútuos. Mas apesar de ser uma farsa, não deixa por isso de ter um propósito. Consome-se o excedente de bens de consumo, o que ajuda a preservar a atmosfera mental particular de que a sociedade hierárquica necessita. A guerra, como se pode constatar, agora é um assunto puramente interno. No passado, a grupos de todos os países no poder, embora podendo reconhecer o seu interesse comum e, portanto, limitar o poder de destruição da guerra, lutaram uns contra os outros, e o vencedor acabava sempre por saquear os vencidos. Nos nossos dias, eles não estão a lutar uns contra os outros em tudo. A guerra é travada por cada grupo no poder contra os seus próprios sujeitos, e o objeto da guerra não é fazer ou evitar conquistas de território, mas para manter a estrutura da sociedade intacta. A própria palavra ‘guerra’, portanto, tornou-se enganosa. Provavelmente seria correto dizer que, tornando-se contínua, a guerra deixou de existir…

“A paz que foi verdadeiramente permanente seria o mesmo que uma guerra permanente. Este – embora a grande maioria dos membros do Partido o compreenda no seu sentido mais superficial – é o significado interno do slogan do partido: A Guerra é Paz …

Ou seja, no mundo de Orwell, ao encenar supostas guerras entre si, os dois ou mais blocos políticos de facto conseguem atingir um grau elevado de estabilidade interna, conseguindo perpetuar a estrutura hierárquica da sociedade, continuando a subjugar os habitantes dos seus respectivos territórios sem nunca porem em questão a existência dos outros blocos políticos. Ou seja, ao encenarem uma guerra continua entre eles, os blocos políticos asseguram a paz efetiva para as suas respectivas elites políticas e económicas, podendo estas continuar descansadas na sua posição de supremacia sobre as outras classes sociais.

A crise da dívida pública está a ser utilizada para Federalizar a Europa, ou seja, para centralizar ainda mais os mecanismo de poder, nomeadamente, para avançar para uma união Económica e Fiscal ainda maior. Por sua vez a crise Ucraniana será sem dúvida utilizada para Federalizar a Europa também, mas por sua vez, do ponto de vista militar, assim como nas áreas da segurança e das relações estrangeiras. Graças à crise da Ucrânia, a NATO anunciou a geração de uma nova força militar de ‘resposta rápida’. O conflito da Ucrânia está também dar uma oportunidade para agentes da industria militar apelarem a que mais verbas sejam disponibilizadas para o exército. Alguns até apontam para a crise da Ucrânia como tendo o lado positivo de obrigar a NATO a começar a aumentar os seus gastos militares, seguindo assim a subida de investimento que a própria Rússia tem vindo a dedicar às suas forças armadas. Este ‘conflito’ serve também como um pretexto para a Rússia continuar a sua crescente militarização assim como uma oportunidade para treinar modelos de anexação dos territórios que a rodeiam nos quais possa ter interesse.

Cada vez mais elementos sugerem que a União Europeia e os Estados Unidos da América estiveram por detrás de várias acontecimentos que ajudaram à escalada das tensões, nomeadamente, os assassinatos de protestantes por snipers. Muitos falam também da hipocrisia da aliança entre o Bloco da NATO e grupos fascistas Ucranianos, como o Svoboda, que a NATO usa como agentes de proximidade no terreno para fazer o seu trabalho sujo.

John Mccain com o líder da organização Fascista Ucrâniana, Svoboda, Oleh Tyahnybok, que tem feito o trabalho sujo da NATO no terreno…

O que tem sido menos discutido, porém, é a que ponto é que a crise da Ucrânia é útil para os dois lados da barricada, ou seja, é um conflito que beneficia os dois blocos, a NATO e a Federação Russa. Este conflito permite aos dois de usarem terrenos contestados para treinar as suas forças militares sem por isso porem a sua integridade territorial em risco. Permite também aos dois lados legitimar perante a sua população maiores gastos da industria militar, que depois serve tanto para agressão estrangeira como para fins de repressão interna.

Sobretudo, temos que olhar para os elementos que revelam este ‘conflito’ como aquilo que verdadeiramente é: uma enorme farsa. De facto o que estamos a constatar não é um conflito entre a NATO e a Federação Russa, mas sim uma demonstração de força controlada, uma espécie de treino em que os dois blocos mostram alguma da sua força sem nunca porem em questão a existência do outro. Vejamos alguns factos interessantes que revelam a colaboração continua entre o bloco da NATO e a Federação Russa, desmascarando a farsa que é o suposto conflito entre os dois:

-As três maiores potências militares da União Europeia, ao Reino-Unido, a França e a Alemanha, continuam a vender armas à Rússia, ao mesmo tempo que os seus líderes apelam a um embargo de vendas futuras

-Os serviços secretos Russos e da NATO continuam a colaborar em grande escala e a partilhar informações sobre inimigos comuns, nomeadamente grupos armados Chechenos, como foi constatado depois do bombardeamento de Boston

-A dependência da Alemanha do gás Russo continua, e os negócios entre os dois países têm aumentado, e não abrandado, desde o anúncio de sanções à Rússia. Vejamos por exemplo:

-Recentemente celebrou-se um enorme contracto mútuo entre a Gazprom, companhia Estatal Russa, e a BASF, companhia Alemã

-Um grupo de investimento Russo investiu 7 mil milhões de Dólares na RWE, companhia de gás Alemã

De um lado, o conflito fornece um pretexto à UE e aos EUA de se unirem militarmente através da NATO e economicamente através da TTIP, inflacionando uma industria de ‘defesa e segurança’ (ou seja, de agressões no estrangeiro e controle doméstico). Do lado Russo, alimentam a fogueira nacionalista e o revivalismo do Imperialismo Russo. Exatamente como nos conflitos Orwellianos no romance 1984 entre os blocos que fingem detestar-se enquanto de facto são coniventes nos bastidores, os dois lados, Rússia e NATO, fingem estar a aproximar-se de um conflito aberto, quando de facto continuam a promiscuidade económica e militar entre os dois, usando a alegada guerra para consolidar os interesses políticos e geopolíticos que têm em comum.

O conflito da Ucrânia, que a comunicação social nos quer fazer acreditar a todo custo como sendo um verdadeiro conflito entre a NATO e a Rússia, é de facto um conflito entre a rede Estatal-Corporativa da qual a NATO e a Rússia fazem parte, e as populações do mundo. Até agora, a população que mais tem sofrido com este pseudo-conflito é a população da Ucrânia, vítimas da hipocrisia e ganância dos dois Blocos. Mas na medida que recursos físicos e energias mentais continuam a ser encaminhadas para guerras fraudulentas e criminosas em vez de serem investidos em verdadeiro desenvolvimento humano, todos nós acabamos por ser prejudicados também.”

Prevejo que no futuro vejamos mais Guerras Orwellianas em que grandes blocos usam territórios intermédios para testar as suas armas, fazer lucros e avançar os seus perversos interesses geopolíticos.

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