RIP José Gonçalves, o jornalista

Dia 1 de Março de 2013 foi publicada uma entrevista que me foi solicitada por José Gonçalves para o jornal online com sotaque tripeiro, Etc.&Tal, de que foi director até Julho de 2023. Em Novembro de 2013 o jornal abriu uma coluna para mim. De Soslaio se chamou.

Nunca estivemos juntos, mas sempre nos entendemos bem. Foi uma amizade da internet. Através desse meio, fiquei a conhecer a sua determinação em fazer vencer o jornalismo em que acreditava. Foi sempre a sua profissão. Nem a reforma nem a doença o impediram de a continuar a exercer.

Soube da triste notícia depois de enviar o meu texto e ter estranhado a ausência de uma reacção sua, sempre profissional e cortês. Que fique aqui como a minha homenagem ao jornalismo do José Gonçalves.

 

Guerras imperiais e o Vaticano

António Pedro Dores

“Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder económico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas.” Laudato Si´, do Papa Francisco

Diz o roto ao nu: porque não te vestes tu?”, dito popular

 

Os movimentos no topo do império continuam a impor-se ao mundo. O Vaticano é a instituição com mais experiência nisso. O que nos pode ensinar?

Como nas guerras da Coreia, do Vietnam, do Afeganistão, da ex-Jugoslávia, é agora a vez da Ucrânia. As ansiedades imperialistas, neste caso com os norte-americanos a fazerem de polícias do mundo, expressam-se, directa e indirectamente, em massacres e violência no país e no estrangeiro. Na China, o império – sem prescindir de guerrear e a preparar-se para guerras maiores – apresenta-se nesta fase da história mais seguro de si. Pudera, a globalização imposta pelos EUA tornou a China uma superpotência. Com a guerra na Ucrânia, a NATO – alegadamente uma aliança defensiva – tornou a Rússia com o seu arsenal nuclear, o maior do mundo, aliado dependente do Partido Comunista Chinês.

Aquilo que foram as Guerras Mundiais (contra o império britânico) e a Guerra Fria (que os comunistas perderam), depois a globalização (de que ressurgiu a China), é hoje uma disputa estratégica entre o G7 (economias incumbentes) e os BRICS (economias emergentes). Os impérios são assim: ingeríveis. Emergem e entram em desagregação com muito ódio, muitas mortes e destruição.

A Europa, como o Titanic, encontrou o seu iceberg na NATO. Está dividida entre a Velha Europa, a ocidente, e a nova Europa, a leste, justificadamente traumatizada pelo império russo que volta a ameaçar. Demograficamente envelhecida e reaccionária, entrega os anéis, a sua ética de livre comércio e os seus interesses geoestratégicos, imaginando que sacrificando ucranianos e russos escapa à derrapagem civilizacional em curso liderada pelos EUA.

O Vaticano, por seu lado, depois da enérgica contribuição para a derrota da URSS, com João Paulo II, dedica-se a autocríticas, como a crítica ambiental e da economia política, com a encíclica Laudato Si´, a instalação de comunidades católicas onde hoje vivem os jovens, fora da Europa, ou os pedidos de desculpas às vítimas dos abusos sexuais de crianças. O jamais visto perfil extra-europeu dos cardeais actuais anuncia uma Igreja que quer estar mais próxima dos novos centros do poder e mais longe dos velhos centros de poder.

A Europa iniciou por via marítima a missão ecuménica desenhada em Roma, no século XIV. Mas, hoje, está incapaz de oferecer perspectivas de futuro. Nas Jornadas Mundiais da Juventude, o Vaticano veio a Lisboa, de onde partiram as caravelas, anunciar que se está a afastar da Europa e dos EUA, esgotados e sem Fé.

Não interessa apurar a justeza moral da missão imperial, que pode ser escravizar, promover genocídio cultural e físico, colonizar, explorar, discriminar. O que interesse é ter fé, como dizem. “A Igreja é de todos!” insistiu o Papa. Ter presente que o inimigo é diabólico e não discutir o que é misterioso, aquilo que é repetido ad nauseam pela propaganda e cada um interpreta como quiser. O que interessa é apoiar o Papa, seja quem for, diga o que disser.

Aproveitando a escolha papal de usar Lisboa para sinalizar a renovação da missão ecuménica da Igreja, à socapa, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa entendeu servir algum propósito ao dar o nome de D. Manuel Clemente a uma ponte. Um grupo de pessoas atentas à circunstância, organizadas para marcar com cartazes a questão dos abusos sexuais desvalorizada pelo então Patriarca de Lisboa – o mesmo D. Manuel Clemente – insurgiu-se. Perante o protesto, o próprio homenageado escusou-se a autorizar o uso seu nome para aquele fim.

Não é a primeira vez que este tipo de coisas acontece em Lisboa. Há pouco tempo percebeu-se que alguém não identificado teria decidido desenhar em pedra da calçada, no jardim do Império, os brasões de territórios colonizados, meio século depois do fim do Império. Uns anos antes, foi a inauguração da estátua de Padre António Vieira a pretexto da cidade não ter realizado “a devida expressão de reconhecimento” para com a figura histórica. A Câmara continua sem organizar qualquer reconhecimento.

Sabendo o povo de Lisboa avesso a glorificações passadistas, a Câmara tem por hábito acolher discretamente os desejos de influentes reaccionários que vivem à sua sombra em circuito fechado. No caso das Jornadas Mundiais da Juventude católica, o reaccionarismo fez a sua emergência no ataque a missas em atenção à comunidade LGBT+, nas censuras às bandeiras arco-íris, na hostilização de quem distribuiu panfletos junto dos confessionários a informar que tinham sido construídos por trabalho não pago de presos. No seu conjunto, não se pode falar de um evento reaccionário. Pelo contrário, é a Igreja Católica que lidera o debate civilizacional numa Europa fora de jogo.

Neste Agosto, a silly season teve uma semana de JMJ23 transmitidas à náusea, em directo e diferido, em modos encomiásticos para a Igreja Católica e o seu líder, em grande parte financiada pelos cidadãos nacionais para proveito dos líderes católicos locais.

Foi o maior acontecimento internacional no país desde a Expo 98 e o Euro 2004, explicaram. A etiqueta “Portugal”, alavancada pelos dinheiros públicos lavados pelas crenças populares, terá subido vários pontos nas bolsas de valores. A festa do regime, a pretexto do catolicismo nacional, alegou servir o turismo e as exportações. Até o Partido Comunista foi obrigado a concordar, esquecendo as perseguições internacionais mútuas entre comunistas e Igreja Católica e o pontificado de João Paulo II. Outros marxistas e capitães de Abril seguem a mesma via. Também há quem questione.

Recordei-me da minha infância, quando um padre professor de Religião e Moral me pediu paciência para não responder às contradições que lhe apontei sobre os mistérios da fé. Mais de meio século depois continuo sem compreender. Ou melhor, compreendo que a questão não é compreender: é aceitar resignado. Quando ouço trechos dos discursos sensatos e anti-fascistas do Papa em Roma, parecem-me mais interessantes do que aquilo que fui acompanhando da sua agenda diária de imperador, em Lisboa, com toda a sorte de cortesãos de todas as tendências que lhe fazem o séquito. As massas adoram o Papa e os impérios.

O Papa e os conquistadores habituaram-nos a desculpas pelos desastres causados pelas instituições que lideram. Pode parecer, por isso, que os abusos sexuais de crianças, a pobreza endémica, a escravatura, os genocídios, o trabalho não pago a presos, a misoginia, a homofobia, a instrumentalização dos povos, a cultura sacrificial, são problemas do passado. Mas não é o caso.

Um Papa corajoso que dá o exemplo de enfrentar os abusos sexuais de crianças na presença de algumas vítimas, pediu-lhes perdão rodeado dos sorridentes membros da conferência episcopal que continua a encobrir como pode o assunto. A hipocrisia perante os sacrifícios dos outros mantem-se viva.

Papa liberal ou conservador no topo, a Igreja Católica não deixa de ser a encarnação do Império, do Deus arrancado ao Cristo. Igreja cuja Fé, no último semi-milénio, se expandiu organizando o Império de quem esteja mais bem posicionado: portugueses, espanhóis, neerlandeses, franceses, ingleses, norte-americanos.

As evidências – mesmo na silly season – mostram-nos as contradições entre os votos abstractos de pobreza e o desrespeito prático pela vida dos pobres. Os corredores do poder revelam a indiferença pela vontade dos povos e pela democracia. A ostentação festiva e laudatória do poder da aliança imperial global sobrepõe-se à empatia cristã com as vidas sacrificadas das pessoas comuns. Os peregrinos estrangeiros, em estado de adoração, mostrados pelos jornalistas, não param de abençoar a Igreja, sempre rica e hipócrita. E, como ela, voltam para de onde vieram ignorantes dos problemas locais, mas satisfeitos com a experiência turística.

Aos comentadores, mesmo aos críticos, não resta outra coisa que não seja reconhecer a força da alienação generalizada: Viva o Papa! Vivam as JMJ2023! Viva a espiritualidade misteriosa da fé! Viva Portugal, cuja história nacional é de um sequioso participar das elites na divisão dos despojos do império!

 

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

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