A Bélgica aprovou recentemente o alargamento da prática da eutanásia a crianças com doenças terminais. O debate relativo à eutanásia orbita maioritariamente à volta do direito ou falta de direito de doentes terminais de acabarem com a sua vida com uma ‘morte sem dor’, termo que constitui uma das próprias definições da palavra ‘eutanásia’. Porém existe toda uma outra dimensão que está a ser, em grande parte, ignorada pela comunicação social; o passado recente da eutanásia, e sobretudo, os possíveis resultados de conceder ao Estado o direito de acabar com a vida de seres humanos arbitrariamente. No século XX, a eutanásia era uma componente central nas políticas de ‘pureza e higiene racial’ do Estado Nazi, e historicamente abriu as portas e serviu de ponto de partida para o holocausto, que resultou no assassinato de cerca de 6 milhões de seres humanos.
Ignorar precedentes históricos de como a legalização da eutanásia pode ser utilizada pelo Estado com resultados trágicos, e o exemplo especifico do holocausto, que demonstra o imenso perigo que conceder o direito ao Estado de assassinar seres humanos arbitrariamente representa para as liberdades individuais, é equivalente a ignorar uma das grandes lições da história do século XX. Foi este o século no qual o assassinato em massa das secções da população consideradas como sendo inferiores pelo regime do III Reich, nomeadamente os deficientes, homossexuais, Judeus, Ciganos, testemunhas de Jeová, dissidentes políticos e todo o tipo de resistentes, entre outros grupos, foi levado a cabo numa escala nunca antes vista.
É um facto pouco conhecido que o holocausto e todo o programa de assassinato em massa recorrendo a processos e metodologias industriais começou com o Programa T4, um programa de eutanásia cuja função era acabar com a vida de pacientes com doenças terminais que eram considerados como um encargo excessivo para o Estado e para a sociedade.

Porém, mesmo sendo que o Programa T4 começou por visar somente pacientes com doenças terminais, muito rapidamente o programa foi expandido para visar outras seções da população que o Estado caracterizava como sendo deficientes, excedentes, etnicamente impuras e/ou socialmente indesejáveis. Existe um consenso entre os historiadores do III Reich que o Programa T4, o programa de eutanásia dos Nazis, a Ação T4, que concedeu ao programa uma legitimidade legislativa, assim como várias vertentes da utilização da psiquiatria pelo Regime Nazi, foram centrais no desenvolvimento do holocausto na sua totalidade.

A Ação T4 estipulava que: “O líder do Reich Philipp Bouhler e Dr. Brandt estão encarregados da responsabilidade de ampliar a competência de certos médicos, designados pelo nome, de modo a que possa ser concedida a morte de misericórdia [Gnadentod] aos pacientes que forem considerados incuráveis, baseando-se no julgamento humano [menschlichem Ermessen] após exigente diagnóstico.”
O termo T4 referia-se ao endereço da Instituição ‘Gemeinnützige Stiftung für Heil- und Anstaltspflege’, ou em Português, ‘Fundação de Caridade para Cuidados Cuidados Institucionais’, o nome aparentemente inofensivo da instituição que levava a cabo o assassinato dos deficientes durante o regime Nazi.
Durante e sua fase oficial, entre 1939 e 1941, o Programa T4 assassinou mais de 70 mil pessoas, mas provas descobertas depois da derrota do Regime Nazi mostram que o programa continuou ocultamente até 1945 e foi responsável pelo assassinato de cerca de 275 mil pessoas no total. Para uma história mais aprofundada do Programa T4 recomenda-se a leitura completa do artigo Wikipedia sobre o assunto.
O programa de assassinato em massa do III Reich, cujo epicentro era a Alemanha Nazi, muito ao contrário do que se pensa, não foi uma ocorrência repentina. Pelo contrário, foi um longo processo incremental, onde o Estado foi gradualmente ridicularizando, vilificando, difamando, retirando direitos e eventualmente, prendendo e exterminando as secções da populações que considerava dispensáveis. Os primeiros a sofrer esta campanha de violência psicológica e física foram precisamente os deficientes. Esta campanha, à semelhança do está a ser feito aos deficientes um pouco por toda a Europa hoje em dia, estava revestida de uma linguagem positiva, assim como uma série de outros mecanismos de propaganda, como a desumanização, a chantagem psicológica assim como a monetarização da vida humana, ou seja, conceber a vida não como um direito essencial mas como uma liberdade concedida pelo Estado que pode ser retirada se o encargo financeiro que esta representa for considerada excessiva.
Existem vários factores verdadeiramente preocupantes. A eutanásia já é legal em vários países da União Europeia, nomeadamente a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo. Ainda para mais, as políticas de austeridade não só têm servido como pretexto para retirar apoios aos mais desprotegidos da nossa sociedade, nomeadamente aos deficientes, tem igualmente revelado a verdadeira natureza predatória do nosso sistema. O argumento que os custos de apoiar os sectores mais desprotegidos da sociedade são insustentáveis, nomeadamente os desempregados, os reformados e os deficientes tem sido acompanhado de uma campanha incessante de vilificação, difamação e desumanização destas mesmas seções da população. Todos estes factores representam o renascimento do Nazismo na Europa, mas desta vez com bandeiras e argumentos diferentes, mas com os mesmos princípios e com a mesma natureza política e social- a intolerância e o ódio dos mais fracos e oprimidos.

Para além dos sectores já mencionados, uma outra secção da população que está hoje a sofrer uma campanha muito parecida com aquela com a qual as comunidades indesejadas pelo Regime Nazi foram vitimizadas no III Reich, sobretudo os deficientes e a comunidade Judaica, é a comunidade Muçulmana, comunidade que está constantemente e cada vez mais a ser desumanizada na comunicação social, ridicularizada, discriminada, constantemente sob vigilância dos mecanismos de espionagem e injustamente visada pelas forças policiais. A guerra contra o Islão é clara e nítida para quem estiver pronto para a ver, e deve ser a preocupação de todos, não só por questões éticas básicas: Muitos avisam que os mecanismos de opressão que visam os muçulmanos poderão, e muitas vezes já estão, a ser utilizados contra o resto da população. Julian Assange avisou recentemente que a vigilância permanente das comunidades Islâmicas será em breve estendida ao resto da população.
Há quem argumente que Portugal não está pronto para discutir o tema da eutanásia. Mas a eutanásia deve ser discutida, e deve ser discutida imediatamente, não só em Portugal, mas também à escala continental e mundial. Mas esta discussão deve inevitavelmente passar por um estudo da história da eutanásia, mais particularmente a sua história recente e como esta pode ser utilizada como pretexto para o assassinato arbitrário, injusto e em grande escala de seres humanos. Na Alemanha Nazi, a eutanásia serviu como um cavalo de Tróia para abrir um precedente para o assassinato em massa dos membros mais desprotegidos da sociedade. Num mundo em que somos confrontados com Estados cada vez mais predatórios, injustos, opressores e violentos, conceder a estes mesmos Estados o direito de decidir quem vive e quem morre poderá vir a ser um dos maiores passos na direção do totalitarismo e eventualmente, do genocídio numa escala nunca antes vista.
João Silva Jordão
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