Faz Sentido Dizer “Volta para a Tua Terra”?

Um dos comentários mais utilizados para exprimir uma visão racista de pertença (ou não-pertença) a um local é a expressão “volta para a tua terra”. Sem dúvida muitos, ou até a grande parte da população negra ou de pele mais escura que vive em países de maioria branca (caucasiana) já terá ouvido este frase. Esta frase, por muito vulgar ou banal que possa parecer, apresenta uma tese interessante que carece de maior análise. Defende a ideia de que certas terras pertencem mais a uma certa etnia do que a outra. Dependendo das diferentes visões destas visões claramente racistas, o direito à pertença legitima terá diferentes características e razões. Porém, a mais comum, será que uma etnia particular está naquele lugar há mais tempo do que outras, ou que habita aquela região em maior número. Daqui vem a utilidade dos termos ‘volta’ e ‘tua’. Quem diz ‘volta’ fá-lo partindo do principio que está a falar com alguém que chegou depois de si, depois dizendo ‘tua’, admitindo que essa pessoa vem de uma terra que a si lhe pertence, não pertencendo, porém, naquela terra.

Esta tese levanta inumeráveis problemas.

Um dos problemas mais óbvios é que as diferentes etnias misturam-se há tanto tempo, e viajam grandes distância há tantos milénios, que o conceito de pertença (ou não-pertença) étnica a um local especifico é tão vago e tão difícil que muitas vezes os próprios aderentes ao racismo geográfico são obrigados a usar outros argumentos, como a pertença cultural. Isto por sua vez gera uma outra dificuldade- a mistura cultural, que ela também permeia a história, ainda mais óbvia, ainda mais confusa e ainda difícil de catalogar a mapear do que a mistura étnica.

Existe também outro grande problema relativamente ao conceito de ‘voltar para onde se veio’, nomeadamente para aqueles que acreditam na teoria que propõe que a humanidade originou de África. Neste caso, não seriam somente os negros, mas toda a humanidade que teria que voltar para África. Assim sendo, e para além da clara dificuldade logística e da total irracionalidade desta proposta, teríamos que identificar qual a área exata desta origem, e depois estipular uma distância do ponto de origem e subsequente área dentro da qual seria aceitável viver relativamente a esta origem. Que distância do ponto de origem seria aceitável? Se esta for 1 km, por que não, 10 km, ou 10,000 km? Mais uma vez somos confrontados com questões pertinentes mas difíceis de responder.

Ainda para mais, se quisermos enviar pessoas de volta para as ‘suas’ terras, porque não tentar expulsar edifícios, costumes, palavras, hábitos ou conhecimentos que vêm ‘de fora’? Nesse caso, teríamos, por exemplo, que rejeitar e eventualmente proibir a utilização do número 0 e da álgebra, de proveniência árabe, os números, de proveniência Indiana, a fé Cristã, proveniente da Judeia, o modelo urbano, proveniente da Mesopotâmia, e basicamente tudo e mais alguma coisa em que se possa pensar. No final do processo de exílio de todas as coisas e pessoas provenientes de ‘lá de fora’, ficariam poucas coisas e ainda menos pessoas para constatar o resultado deste exercício de exorcismo xenófobo.

Alfama 2
Diz-se por Lisboa que o estilo arquitectónico do bairro de Alfama tem influências Árabes e Mouriscas. Será que devemos expulsar Alfama para Marrocos, ou para a Peninsula Árabe, talvez? Tantas perguntas, e tão poucas respostas…

Em conclusão, dizer “volta para a tua terra” pode, eventualmente, fazer sentido, mas para o podermos dizer, digamos, aos negros, nomeadamente, ‘Negro, volta para a África’, deveremos também dizer, ‘Louro, volta para a Europa Central ou para a Escandinávia’, ‘Moreno, volta para o Médio Oriente’, etc. Podemos até contemplar ordens racistas mais eruditas e complexas, como por exemplo, “Tu que tens uma complexão morena mas não morena suficiente para ser da África em geral, e que também não possuis um cabelo suficientemente encaracolado para ser a progenitura de povos vindos maioritariamente da Africana Subsariana, volta portanto, provavelmente, digamos, para a área entre o Egito e o Irão, relativamente ao eixo Oeste-Este, e entre o Cáucaso e a Arábia Saudita, relativamente ao eixo Norte-Sul. Peço desculpa por não o enviar para um sitio mais preciso mas é o máximo que a etnografia moderna me permite fazer de momento, estando esta ordem susceptível a ser modificada, alargada ou diminuída a qualquer momento consoante a descoberta científica relevante”.

De qualquer forma, podemos igualmente propor que a educação, nomeadamente o conhecimento da história da humanidade, não tendo necessariamente o resultado de erradicar o racismo, tende a complicar consideravelmente os termos em que estes são exprimidos, e, no caso de se tratar de uma educação fundada no empirismo e não na suposição, tende igualmente a sabotar as fundações do racismo como o conhecemos hoje.

João Silva Jordão

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3 respostas

  1. Só gostaria de acrescentar dois pontos que o João não foca.
    O primeiro prende-se com a ilusão de que o racismo só existe dos brancos contra os pretos, como se depreende do texto. Ora, todos sabemos que isso em nada corresponde aos factos. Experimente passar por Angola, por exemplo, e verá como os pretos tratam os brancos.
    O segundo ponto tem a ver com a essência do próprio racismo. Creio que a raíz desse fenómeno se deve a uma questão de insegurança e não fundamentalmente de lugar ou cultura. Quem adoraria viver num prédio exclusivamente habitado por negros?
    ZM

    1. Caro sr. José Oliveira,
      Se fala da forma como os pretos tratam os brancos em Angola, lembre-se como os brancos trataram os pretos quando para lá foram. É normal que persista um sentimento negativo e que eles não queiram voltar a ser tratados da mesma forma, transpondo esse sentimento numa certa rejeição contra os brancos.
      Relativamente à questão da insegurança, qual seria o problema de viver num prédio maioritariamente habitado por negros? Acha que o iriam roubar? Acha que iriam violar a sua mulher? Por favor não seja ignorante.

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