Pandemia, Odemira e Ciência

Fui ao observatório das migrações ver o que se sabe sobre a situação em Odemira. Encontrei 28 referências sobre Odemira, 52 sobre escravatura e 80 (28+52) sobre escravatura e Odemira. Isto é, as referências que falam de Odemira não falam de escravatura e as que falam de escravatura não falam de Odemira.

A recente descoberta veiculada nos media de haver escravatura nos trabalhos agrícolas em Odemira, acompanhada das declarações de altos responsáveis políticos sobre que já se sabia e que o caso alentejano não é caso único em Portugal, na Europa e no mundo, não será uma descoberta científica. Há, pois, à margem da ciência, canais de informação mais bem informados que chegam aos políticos, informações que podem ser expostas no parlamento ou nos jornais, sem que fique registo ou memória científicos. Na verdade, para os políticos e para os cientistas sociais os direitos humanos, ecológicos e de soberania são departamentos diferentes entre si e diferentes também das migrações. Foi o escândalo que revelou a urgência e a importância do tema (ou temas) ser tratado como um todo, e teme-se que a indiferença se venha a instalar de novo. Isto é, que a indiferença política e científica volte ao normal mais rapidamente do que está a acontecer com as limitações de liberdade impostas a respeito da pandemia

Durante a pandemia falou-se bastante da importância da ciência para a orientação política e social. Falou-se menos, ou melhor, censurou-se bastante a questão de compreender o modo como a ciência está ao serviço dos grupos dominantes e não ao serviço da humanidade, como um todo. O assunto entrou na agenda política global com a tomada de posição do Presidente Biden, ao anunciar o levantamento temporário dos direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas, com vista à sua replicação a custos acessíveis a todas as pessoas e todos os estados: será que os investimentos e pagamentos dos estados à indústria farmacêutica, nomeadamente a respeito das vacinas e de direitos de propriedade intelectual, bloqueiam as oportunidades de melhor saúde para todos? Será que o modo de financiamento da ciência faz com que o trabalho dos cientistas mais bem organizados e mais apoiados seja virado para as necessidades de quem lhes pode pagar, negligenciando quem não o pode fazer?

A União Europeia, que dispõe de serviços de saúde de acesso universal, opõe-se ao levantamento temporário dos direitos de propriedade intelectual. Fá-lo, talvez, por ter um método de comprar solidariamente as vacinas e distribuí-las gratuitamente, à custa de contratos pagos pelos contribuintes. Nos EUA, onde os serviços de saúde apenas são acessíveis por quem os pode pagar, como na generalidade do resto do mundo, é evidente a necessidade de actuar pela suspensão desses direitos. O Papa reconheceu isso.

Fica claro, então, que a ciência trabalha para quem pode pagar e não para a humanidade. Onde a solidariedade social está organizada – como excepcionalmente aconteceu na União Europeia a respeito da compra de vacinas, tão excepcionalmente que a inexperiência não soube evitar problemas com os contratos com as farmacêuticas – os estados podem aparecer no mercado como grandes compradores e, caso o entendam, podem tratar (ou não) todas as pessoas a viver no seu território de modo igual.

No caso português, a intenção do governo e do estado em tratar todas as pessoas por igual revelou as desigualdades sociais e aquilo que a expressão encobre: o aumento das desigualdades sociais, a sua banalização, porque – explicaram alguns comentadores – todos estavam interessados nesse aumento, ao ponto de se chegar a situações de escravatura.

O Professor António Pedro Dores é autor de dois livros particularmente pertinentes relativamente à pandemia, nomeadamente, reflexões epistemológicas assim como um tratado sobre o Estado Social (Real)

Imagine-se que algum investigador social que tivesse passado por Odemira tivesse sabido daquilo que os políticos do governo e da oposição dizem que já sabiam: há um problema de recrutamento de trabalho escravo na Europa. Ou tivesse encontrado indícios de exploração esclavagista durante as suas investigações. O que será que as ciências sociais podem fazer a esse respeito? Como poderiam explicar, como o fazem alguns comentadores, que as pessoas escravizadas também têm interesse em ser escravos? Ou como o governo que se mostra igualitário na distribuição de vacinas poderia considerar os trabalhadores agrícolas estrangeiros populações prioritárias para os serviços de saúde, a par dos idosos em hospícios?

Imagine-se uma equipe de investigação social, sem o respaldo de condenações judiciais passadas em julgado, a registar a existência de trabalho escravo em Odemira. Será que o estado voltaria a financiar estudos a essa equipa? Como poderia voltar a trabalhar no terreno, sem financiamentos? Como poderia voltar a gizar projectos de investigação com o apoio do centro de investigação e da universidade, pagos também por quem financia a investigação? A quem serviria o registo de escravatura num relatório social, incomodando os leitores, os financiadores e os colegas – que logo perguntariam qual é a definição de escravatura que está a ser usada, a razão pela qual se usa essa definição e não outra menos espectacular, se os dados recolhidos, de tão inacreditáveis, estariam a salvo de qualquer refutação – quando as condições contratuais de quem não trabalha sob escravatura são igualmente miseráveis?

Como nas ciências duras e farmacêuticas, também nas ciências sociais há uma tendência sustentada, avaliada e sancionada de não questionar o fundo das políticas sociais. O fundo é a organização e facilitação da exploração da Terra e dos seus recursos, incluindo os recursos humanos. Essas políticas científicas e sociais podem ser caracterizadas (Dores, 2020, 2021).

Referência:

Dores, A. P. (2020). A Estado Social Real. RCP edições.

Dores, A. P. (2021). Reeducar o século XXI: libertar o espírito científico. Lisbon International Press.

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Uma resposta

  1. Muito pertinente e esclarecedor. Talvez necessitasse ser mais incisivo. Mas pelas suas explicações poderia ser perigoso para futuras investigações.

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