A morte da verdade, o reavivar das discriminações e as nossas responsabilidades

A russofobia vem substituir o ódio aos vírus, que por sua vez tinha substituído a islamofobia na propaganda global que, de forma cada vez mais populista, toma paulatina e seguramente conta do estado de espírito ocidental, regularmente alimentado com urgências existenciais e barreiras de fogo mediático capazes de manterem o TINA (there is no alternative, não há alternativa). Não há alternativa à guerra?

Trump e Putin apoiam os avanços da extrema-direita internacional e, com a ajuda do sr. Biden e da União Europeia, conseguiram organizar campos de batalha para mercenários, pagos por um e pelo outro lados da guerra, a coberto das lutas pela independência da Ucrânia e da autonomia das províncias russófonas – coisa que os espanhóis, à bruta, a propósito do País Basco e da Catalunha, mantém sem guerra (ainda?) há anos.

A ocidente, iludidos pela tese dos totalitarismos que se oporiam às liberdades liberais (como se os oligarcas não fossem o resultado das mais liberais das liberdades proporcionadas pela Rússia pós-soviética, invejadas e apoiadas pelo neoliberalismo) explodem de alegria não pela guerra (seria demasiado imoral), mas pela unidade manifestada contra o império de Putin, como se fosse o último dos impérios na Terra e a sua derrota ou erradicação nos trouxesse alguma perspectiva de solução para os problemas financeiros, ambientais, políticos, sociais, de saúde, em especial de saúde mental, que estão a derrotar a civilização.

Depois da crise financeira de 2008, as pessoas manifestaram o desejo de os políticos arranjarem maneira de tudo voltar à normalidade. Pelo menos era o que os políticos diziam que se ouvia na rua, dando esperanças às pessoas de a normalidade ser algo real. A guerra de civilizações, declarada oficialmente em 2003, nos Açores, era uma promessa que a normalidade (uma América sem ataques terroristas islâmicos) seria conseguida levando a guerra para longe dos EUA. A crise do subprime mostrou que a devastação criminosa da vida das pessoas não era monopólio dos terroristas islâmicos. Para esconder responsabilidades, a UE incentivou a discriminação dos países do sul da Europa, chamando-lhes PIGS, tratando-os ao modo colonial e explicando que a preguiça, a dívida, os prazeres do sexo e do álcool, entre outros problemas morais, deixaram os europeus à mercê da bem-intencionada e estrutural ganância dos banqueiros.

Os populistas globalistas, para sacudir a água do capote, em vez da cor da pele e da recriminação de culturas exóticas usadas pelos neo-nazi-fascistas, fizeram vingar o TINA escondendo as discriminações sob a forma abstracta de pontos cardeais. O obreirismo, a moral financista, o puritanismo, responsabilizaram trabalhadores, devedores e hedonistas pela falta de solidariedade vigente em Bruxelas. “There´s no such thing as society!”, ensinou a sra Thatcher.

As políticas universais de apoio à vida quotidiana, criadas no pós-guerra, partindo do princípio de haver necessidades básicas iguais para todos e cada um dos seres humanos que cabia às sociedades modernas garantir, foram substituídas, nos anos 80, pelas políticas de combate à pobreza: armadilhas para manter as pessoas na pobreza, convencidas de que a culpa é sua, por qualquer das razões que os serviços de controlo e propaganda do estado podem arranjar para justificar a existência de miséria ao lado da opulência.

Alegou-se então, como hoje, que não haveria dinheiro para fazer sair da pobreza toda a gente: sabemos hoje que havia – e há – dinheiro a rodos para inundar os bancos ou para investir na guerra. O verdadeiro problema é que não há o que fazer com tanto dinheiro, mesmo pondo as pessoas a trabalhar semanas de cada vez mais horas.

Não há, nunca houve, nenhum normal para onde voltar: a crise financeira, a nazificação da política, a confusão instalada nos combates às doenças de origem indeterminável, os riscos de guerra nuclear, estão para ficar, a juntar às mudanças climáticas e à falência dos estilos de vida modernos.

As guerras – a que todos nos opomos, incluindo aqueles que as fazem – revelam bem, a par das misérias próprias dos tempos de paz, a impotência das sociedades mais bem-educadas de sempre. O que só pode querer dizer que há algum equívoco na educação prestada. Quem nos ensina a responder às contrariedades práticas que se acumulam de forma cada vez mais acelerada?

Se não foram os russos, mas o sr. Putin e os seus generais, quem inventou a guerra contra a Ucrânia, por que razão as sociedades europeias – as mesmas que rechaçaram os refugiados sírios e todos os outros que antes deles fugiram das guerras alimentadas pelas indústrias de armas ocidentais – decidiram receber excepcionalmente bem os refugiados ucranianos e ostracizar generalizadamente os russos, vivos e mortos? Porque é que os povos ocidentais ansiosos por paz não impõem aos seus governos a responsabilidade diplomática de acabar com a guerra – cedendo o que for preciso para aliviar o sofrimento do povo ucraniano? Porque é que, ao contrário do que acontece sempre que há guerras, os EUA não fazem parte da mesa de negociações? Porque é que pela primeira vez a comunicação social dominante está a favor das vítimas de agressão, e não do agressor imperial, como do costume?

A sangria demográfica e a destruição das cidades da Ucrânia, a prisão de todos os oposicionistas na Rússia, as chacinas, a dádiva aos criminosos que vivem do tráfico de pessoas, aos torturadores e criminosos de guerra, às indústrias bélicas, às milícias neo-nazis, às empresas privadas de guerra, tudo mobilizado dos dois lados, é justificável pelo exacerbamento do nacionalismo que, supostamente, a globalização e em particular a UE deveriam moderar e reduzir? A quem interessa os nacionalismos? Não é a quem pretende acabar com a ideia de globalização? Tal ideia ainda existe, depois de Trump?

Que fazer? Todos temos o nosso papel a cumprir, e não estamos a cumprir.

Tal como os nazis não foram contrariados pelos alemães, quando trouxeram as discriminações à vida quotidiana, contra judeus, homossexuais, ciganos, comunistas, mulheres e mais o que fosse, também a UE está a introduzir sucessivos motivos de discriminação social quotidianos que se somam e a que os europeus se habituam, procurando esconjurar crises em nome de uma normalidade que nunca existiu.

Não somos impotentes: todos e cada um podemos e devemos, para nossa própria salvaguarda, denunciar e não aceitar discriminações sociais. A começar pelas mais óbvias, como o racismo, o ódio aos pobres, a islamofobia, a russofobia, a repugnância pela reflexão sobre como nos protegermos da exploração da Terra e dos seus recursos humanos (nós próprios).

Podemos revoltar-nos contra a censura organizada pela Comissão Europeia de órgãos de comunicação social sem nenhuma autoridade ou legitimidade para o fazer; podemos juntar-nos à luta para evitar a instalação do crédito social chinês na Europa, a pretexto da pandemia; podemos exigir uma gestão racional e moral das dívidas públicas; podemos denunciar a separação de milhões de famílias de refugiados e emigrantes, o tráfico humano, a distribuição de armas, a indústria da guerra privada, a utilização pelas democracias de redes de fundamentalistas islâmicos e neo-nazis para seus fins de guerra suja, a promoção do tráfico de drogas ilícitas, a corrupção a coberto de intervenções militares, como no Afeganistão ou no Kosovo. Na Ucrânia, haverá razões para haver uma excepção?

As milícias já estavam no terreno na Ucrânia. Vai passar a ser a única fonte de rendimento dos homens a viver sozinhos – com todos os dramas que se podem esperar dos traumas de guerra para os militares e para as pessoas que eles venham a encontrar na vida. Como o anúncio da entrada da Alemanha como parceiro de pleno direito no complexo-militar-industrial norte-americano, arrastando a União Europeia no abandono da sua aliança energética com a Rússia (cuja ostracização chega à cultura, ao desporto, à russofobia, mas não chega – para já? – ao comércio de energia fóssil) vai resolver o problema da militarização de um território destruído, antes habitado por 40 milhões de pessoas? Seguir-se-á a militarização do resto da Europa que alguns já anunciam?

Não há alternativa à paz. A guerra é sempre temporária. Não fossem os impérios a organizá-la, quem – além dos milicianos voluntários – a quereria? A paz na Europa foi quebrada aquando da (esquecida?) destruição da Jugoslávia, forma de afirmação das intenções agressivas da NATO incentivadas por alemãs e norte-americanos. Voltou a ser quebrada na Ucrânia, num tempo de reformulação da ordem internacional, por iniciativa do Kremlin, para marcar na história a derrota da globalização e a ascensão dos nacionalismos. Tudo ainda se prepara para piorar bastante, antes de haver esperança de que as coisas melhorem.

Precisamos de ter esperança, de ter fé na paz, e isso é tarefa de todos e cada um.

 

 

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