Será isto uma pandemia?

Eis a pergunta que divide os negacionistas e os seguidores da ciência. Separa-os as limitações das democracias. Estas revelam-se, por exemplo, na inexistência de produção de quaisquer campos de debate sobre a pandemia livres de preconceitos. Os negacionistas negam-se a pensar cientificamente e os seguidores da ciência negam-se a discutir as convicções científicas dominantes.

O editor chefe da The Lancet, uma das mais prestigiadas revistas científicas de saúde, publicou em Setembro de 2020 um artigo a chamar a atenção para um conceito proposto no final do século passado por Merrill Singer, médico e antropólogo: sindemia. A sindemia não é uma pandemia qualquer. É uma sinergia entre várias causas de doenças, biológicas e sociais, que potenciam o surgimento de patologias a partir de situações e agentes de outro modo não patológicos ou menos graves. Sinergia que deve ser rompida, sob pena de se perpetuar, mesmo quando haja meios de controlar a epidemia.

A importância deste artigo não foi notada pela comunicação social nem pelos governos dos diferentes estados. Este artigo é de uma ciência que existe, mas existe dissimulada pela ciência dominante, a ciência centrípeta. A ciência ensinada nas escolas e nas universidades avalia os resultados da ciência pela disponibilidade dos conceitos serem utilizados industrial ou socialmente (políticas públicas). Toma esses conceitos por realidades, em vez de os entender como representações da realidade que são. Isso tem o efeito de desqualificar os conceitos, novos ou velhos, que não servem as indústrias nem as elites sociais, em cada momento.

Claro que a ciência vive neste mundo e está sujeita aos mesmos processos sociais que implicam o resto da sociedade, nomeadamente na sua submissão aos interesses dominantes. Mas como acontece também em todas as áreas de actividade humana, as realidades práticas continuam a evoluir, independentemente das representações que delas fazem as pessoas, alunos, professores, comunicação social, governos. Há quem procure animar os espaços de liberdade que sempre existem e podem ser fabricados com novos conceitos e novas propostas de acção. É o caso da mobilização da sindemia, agora.

Será que a Organização Mundial da Saúde (OMS) não conhece o conceito? Não tinha obrigação de o conhecer? Ponderou a possibilidade de actuar como se estivéssemos numa sindemia, em vez de estarmos a viver uma pandemia? Quando a OMS diz que as pandemias passarão a ser mais recorrentes que no passado e que esta pandemia poderá durar por décadas, estará a referir-se à sindemia, sem citar o conceito?

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa exigiu do governo a que deu posse acabar com os sem abrigo em Lisboa durante a legislatura, como se acabou com as barracas há umas décadas. No fim da legislatura foi verificar o que estava feito a esse respeito e aprendeu que não é possível fazer isso: declarou que acabar com os sem abrigo, acolher em habitação própria umas centenas de cidadãos pobres, era impossível. Não explicou porquê. Talvez não saiba porquê. Se o soubesse, tinha feito como os outros presidentes que nunca levantaram tal questão.

Marcelo é uma das pessoas mais cultas e respeitadas de Portugal, partidário da ciência e contra os negacionistas (embora só depois de, no início da pandemia, ter apanhado um susto por ter estado em contacto com estudantes contaminados). Católico praticante e entusiasta, é promotor dos estados de emergência, prática sacrificial para afastar a pandemia (há quem, no Brasil, tenha encontrado dados que apontam no sentido de os confinamentos serem contraproducentes para evitar a propagação da doença). Durante os estados de emergência, nenhuma reflexão foi feita sobre como transformar os lares de idosos, os serviços de saúde, ou as habitações e os transportes públicos usados por quem não tem como se proteger da sindemia.

A chuva de estatísticas epidemiológicas fornecidas pelo ministério da saúde para ocupar, desde há meses, o principal dos noticiários mostra os infectados e os mortos com uma enfase que ocupa a atenção e o tempo que poderiam ser dedicados a cumprir e fazer cumprir os desideratos constitucionais (especialidade profissional de Marcelo) sobre a obrigação do estado português assegurar condições de vida condignas para todos. Atenção e espaço que poderiam também ser ocupados por balanços sobre as possibilidades de cura dos doentes.

A diferença entre sindemia e pandemia não é, pois, uma mera delicadeza conceptual, um capricho de disputas de prestígio intelectual, uma maneira de incomodar quem trabalha e não tem tempo para pensar. O primeiro conceito, ao contrário do segundo, reconhece que não é apenas o vírus que produz a doença COVID-19: a sociedade é parte da produção de algumas doenças, entre as quais as sindemias. Se assim for, isso explica a razão pela qual as elites representadas nos governos, coordenadas pela Organização Mundial de Saúde, criaram as condições de falência dos pequenos negócios e de desemprego dos trabalhadores precários, enquanto a economia digital acumulou riqueza em dobro ou mais durante os confinamentos. A parte protegida da sociedade foi chamada ao confinamento profilático só aparentemente semelhante ao confinamento das pessoas mais susceptíveis à sindemia.

Independentemente das intenções dos políticos (como aqueles que propuseram deixar de garantir serviços de saúde públicos e gratuitos para os reformados) e dos filantropos (presumo que se soubessem que as suas declarações viriam a ser interpretadas como conspirativas, delas se teriam abstido) é a sociedade como um todo, é o nosso modo de vida que está a destruir o meio ambiente que foi favorável às espécies que têm sido extintas e à própria humanidade, aquilo que é a causa da epidemia SARS-Cov2 estar a ser vivida não como uma gripe sazonal mas, antes, como uma novidade radical, o fechamento da economia global, um tempo de transformação a ser planeado pelas elites, com o resto das pessoas presas em casa ou à sobrevivência em isolamento e abandono social a que o estado as remete, a somar às suas condições de vida precárias e à doença.

A sindemia, portanto, não é apenas um evento de saúde: é o agravamento das cissuras sociais previamente existentes, conhecidas, perante as quais as elites e as sociedades se têm imaginado, conformado e declarado impotentes e incompetentes, dissimulando essa resignação sob a forma de medo de doenças que mais não é do que inibição de participação da esmagadora maioria das pessoas nas tarefas da sua própria sobrevivência.   

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