Será possível que a pandemia tenha sido inventada para nos incomodar? (5)

O primeiro artigo desta série está disponível aqui.

Se fosse o Bill Gates o conspirador que tinha inventado a COVID-19 para um efeito qualquer inconfessável, eu estaria descansado. Aprendi com a história do século XX, a história da afirmação política das estratégias de planeamento, que o planeamento centralizado dá asneira. O planeamento eficaz, o que saiu vencedor da Guerra Fria, foi o planeamento flexível e indicativo, compatibilizado com a liberdade de decisão individual hierarquizada e discriminatória, de que é modelo a política e a economia norte-americana.

A conspiração da COVID-19 não deve ser procurada nas intenções das elites, embora essas contem mais do que as outras. A conspiração da COVID-19 é um aspecto de uma conspiração antiga, discreta, dissimulada, lá onde é mais difícil de a desmascarar: é parte indelével da identidade de cada uma das pessoas socialmente integradas ou com esperança e vontade de serem integradas na modernidade.

A desumanidade imposta a seres humanos que vivem em países inimigos é evidente para nós. A brutalidade do Saddam Hussein contra os vizinhos e a sua própria população era evidente para os ocidentais e, mesmo sem armas de destruição maciça, a guerra humanitária para salvar os iraquianos do ditador, libertando-os para a democracia, era e é um discurso convincente e utilizado. Ao invés, o facto denunciado pelo New York Times de as prisões dos EUA terem treinado os torturadores cujos actos de tortura foram registados e divulgados pelos próprios, a partir da prisão de Abu Grahib, no Iraque ocupado, foi escamoteado, apesar de publicado. Pior, despoletou uma controvérsia política que acabou com a legalização da tortura nos EUA.

Desse modo, todos, indiferentes ao que se passa nas prisões, somos cúmplices e vítimas dos torturadores. Ao mesmo tempo, ficamos atentos e consternados com a tortura protagonizada por terceiros, e mantemos nos distraídos, incrédulos, inactivos contra as evidências de torturas feitas em nosso nome. Objectivamente, por omissão, somos colectivamente cúmplices dos torturadores e disponíveis para isolar como traidores os que denunciam os crimes de guerra (como Manning e Assange), os crimes dos estados que nos representam (como os activistas dos direitos humanos que a Amnistia Internacional protege, divulgando anonimamente os seus relatórios fora dos países a que dizem respeito), os crimes de utilização imoral e ilegal das informações registadas na internet pelos estados mais poderosos do mundo (como Snowden).

Com a COVID-19, independentemente de apuramentos de responsabilidades que se venham a fazer, quem estiver disponível para se perguntar “como é possível?” deve começar por se olhar ao espelho e perguntar de que é feito. Que parte de cada um é produto da sociedade, independentemente dos desejos e decisões individuais? Para o efeito, como ensinam as ciências sociais, a estatística é uma ajuda importante. Através dos estudos estatísticos, aquilo que mais queremos esconder em nós pode ficar evidente pela observação das acções de todos, dos outros, mesmo que alguns queiram e consigam esconder de si mesmos aquilo que é verdade.

Um exemplo clarifica o que se acabou de dizer. Numa viagem à Índia, numa conversa casual com jovens muçulmanos, em Serinagar, Caxemira, zona de disputa com o Paquistão, onde as questões religiosas, políticas e identitárias são muito tensas, perguntaram a que religião eu pertencia. “Nenhuma!” respondi. Não aceitaram a resposta. “Diz lá!” – como português estava muito longe das disputas locais. Porque estaria eu a esconder a minha identidade religiosa? Afinal, não era minha opção escolher a religião que adopto, do mesmo modo que para eles isso também não era opcional. Era uma questão de sobrevivência ou de solidariedade, como se quiser entender. Perante a minha surpresa e recusa de oferecer uma resposta útil ao avanço da conversa, alguém a concluiu: “É cristão. Pronto!” Claro que sou cristão, no meio de muçulmanos em luta com hindus – pensei para mim. Entretanto, a conversa pôde, por fim, chegar onde eles queriam chegar: o mais velho preparava-se para emigrar para um país do Médio Oriente. Tomou a palavra: “Aquilo que aprecio nos cristãos é a liberdade individual, a liberdade de encontrar emprego em qualquer parte do mundo”.

Quer queira, quer não, claro, sou cristão. Sobretudo na Índia. Mesmo que não tivesse dado conta disso antes, a verdade é que se não fosse cristão, quem seria eu? Ainda que quisesse não ser cristão, como evitaria a educação cristã que me conformou? Ao mesmo tempo, compreendi e lamentei a liberdade cristã do jovem sacrificado emigrante que foi trabalhar para a indústria petrolífera, para ajudar a sua família, como muitos portugueses foram e continuam a ir, nem sempre em boas condições e correndo riscos que nunca experimentei.

Que raio de conspiração fez de mim um cristão, contra a minha vontade? Como me tornei desconfiado da liberdade cristã tão apreciada por aqueles muçulmanos?

A resposta a estas perguntas admite duas dimensões: a minha posição hierárquica (herdada com a minha cristandade) e o fim da guerra colonial mesmo antes de eu ser incorporado na tropa fizeram de mim um observador interessado nas ondas de emigração dos portugueses e, com a liberdade do 25 de Abril, conhecedor das misérias que obrigavam os emigrantes a ir de salto e a viverem nos bidonvilles. Não pude falar disso aos meus amigos indianos. Os emigrantes não são o emigrante. Qualquer história triste que eu pudesse contar sobre a triste sorte dos emigrantes portugueses seria mal recebida, com toda a razão. A decisão de emigrar tomada em família permitiu libertar o jovem emigrante da família. O abandono da família, sem possibilidade de retorno, torná-lo-ia independente das redes tradicionais de fidelidade, a que ficaria a partir de então apenas ligado voluntariamente. A família depositara nele a esperança de poder ter um rendimento suplementar. Há emigrantes que ficam ricos, mesmo que também haja os que morrem no caminho ou no trabalho. Todos sabemos disso. Não seria pertinente, seria mesmo inconveniente e ofensivo explicar aquilo de que os emigrantes não querem ouvir falar: que as condições de exploração do trabalho imigrante é pior do que a exploração dos trabalhadores locais.

A segunda dimensão a considerar, além das diferenças de posição na hierarquia social, é a estanquicidade entre os planos social e individual da existência. Um exemplo mostrará a força dessa distinção de planos. A propriedade de apartamentos urbanos é uma forma de algumas pessoas concretizarem a sua reforma. Ficam, assim, ao abrigo dos movimentos de mercado de habitação e podem fixar residência, sem temer acções de despejo. Podem, eventualmente, alugar e fazer algum rendimento suplementar. Como no jogo do monopólio, quem tenha uma casa está bem. Mas pode haver a tentação de usar uma casa para fazer dinheiro e comprar outra. O jogo não se altera muito antes de um dos jogadores comprar tantas casas que se torna monopolista. Nesse caso, tudo se transforma. Na realidade, quando o jogo do monopólio acaba é que a vida começa. Isto é, uma coisa é a propriedade da sua habitação ou de duas ou três habitações. Outra coisa são os fundos abutres que compram centenas ou milhares de habitações a 1/10 do preço de mercado aos bancos a que foram entregues no tempo das falências familiares em série, quando os contratos de trabalho foram rasgados (ao contrário dos contratos de dívida) a pretexto da crise financeira de 2008, do resgate da falência do sistema financeiro global.

É difícil dizer qual a quantidade de casas que torna um proprietário monopolista e a que posição na hierarquia estará. Isso depende dos usos que cada um faça das suas propriedades e, em termos sociais, do estado dos mercados financeiros, de habitação e da política.

A estatística, a ciência de recolher informações para os estados, é conhecida pela sua ductilidade: “há as mentiras, as grandes mentiras e as estatísticas”, queixou-se Disraeli, dos primeiros políticos confrontados com a nova situação de ter de lidar com as estatísticas que os estados começaram a produzir no fim do século XIX, a par dos jornais de massas. No século XX, Moscovo e Pequim eram conhecidos por serem centros de manipulação das estatísticas que favoreciam politicamente os seus dirigentes. No ocidente, a liberdade de expressão obriga alguma contenção na manipulação das estatísticas, pois isso pode sair pela culatra. Porém, a maior das manipulações estatísticas, como começámos por dizer a respeito das conspirações, reside na inocência cognitiva dos leitores das estatísticas.

Frequentemente as estatísticas são apresentadas como a verdadeira realidade, mais real do que a realidade. No caso da COVID, por exemplo, a raridade dos números de mortos pela doença e a necessidade política de informar as populações de modo a justificar a acção governativa, os números de infectados tornaram-se protagonistas. As políticas de indução do medo vêm de longe, com as guerras contra o terrorismo, contra os devedores, contra os refugiados, agora contra o vírus. Se se insistir em mentiras, meias verdades, em estatísticas, em volumes de dinheiro incompreensíveis, em vacinas, etc., a realidade que as pessoas podem observar no seu quotidiano perde o pé. Se as televisões, os jornalistas, os especialistas, os cientistas, os políticos, entram em sintonia, pois a guerra assim o impôs, quem é cada um de nós, em casa, sem estudos, para duvidar? Como dar sentido às torrentes de informação que nos despejam todos os dias, contraditória ou não? As teorias da conspiração procuram sentidos alternativos, mas – aliás como as justificações oficiais – falham miseravelmente em explicar, por exemplo, como é possível ser tudo o resultado de uma ilusão e, ao mesmo tempo, os hospitais e as morgues estarem efectivamente cheias de doentes e mortos?

Cerca de 30% dos infetados por Covid-19 em Portugal contraiu o vírus em casa (Lusa)

A ciência ensina-nos a não desistir de insistir nas perguntas pertinentes. Como é possível estarmos confinados na nossa impotência colectiva perante um vírus? Para já, há que reconhecer que as ilusões podem tornar-se realidade. Não são raros os casos em que isso acontece. As estatísticas, conforme se viu, são um exemplo. Os dados estatísticos sobre as doenças, por exemplo, descuram frequentemente, como é o caso com a COVID, as hierarquias sociais e a estanquicidade entre os diferentes níveis sociais. A pandemia não é mesma entre os idosos e as crianças, os que se podem confinar confortavelmente e os que não dispõem de habitação condigna, dinheiro para a aquecer ou internet.

Há especialistas que sugerem, desde o início da pandemia, que a política deveria ser proteger os idosos sem autonomia e em lares, e outros grupos que sejam identificados como vulneráveis, nomeadamente as famílias que vivem em más condições de habitabilidade. Esses mais não fazem do que sugerir o que sempre foi costume fazer em ocasiões semelhantes: cuidar dos doentes, começando por prevenir as doenças. Nunca antes se tinha pensado ser possível ou recomendável confinar os saudáveis, porque o seu trabalho é indispensável para cuidar dos doentes. Porém, estes especialistas e a sabedoria tradicional foram cilindrados pela conversa excitada e oca com que a propaganda e publicidade das vacinas ocupa todo o espaço público, com a ajuda preciosa das estatísticas que nos fazem perder qualquer noção da realidade e ficar à espera das interpretações dos especialistas (frequentemente eles próprios baralhados com os dados). O que todos sabíamos tradicionalmente, que é preciso cuidar dos doentes, foi ultrapassado por aquilo que se passou a chamar ciência, os receituários que os jornalistas procuraram extrair de cada um que foi convidado e se dispôs a falar.

Com este ruído de fundo, os estados puderam, em vez de se prepararem para os cenários pandémicos previsíveis, fingir que tudo iria passar em breve, que as vacinas seriam uma cura, que a procura de curas não seria prioritária. Os estados, confrontados com os riscos pandémicos, reconheceram ser necessário reforçar os serviços de saúde para enfrentar situações semelhantes, mas não fizeram nada nesse sentido. As estatísticas mostram onde moram e as idades de quem morre. Os estados admitem tratar mal os idosos e os pobres, mas não mudam uma vírgula nas políticas vigentes a esse respeito.

As estatísticas estão a servir para transmitir ideias falsas, como o risco de morte ser igual para todos (isso torna a situação insustentável. O segundo confinamento não está a acolher a adesão do primeiro: a infantilização do público tem limites). Os analistas das estatísticas imaginam, e fazem-nos crer, que somos uma sociedade igualitária e que podemos todos viver de maneira saudável sem sair de casa.  Quem tem culpa da pandemia, então, já não é mais o malvado do vírus. Agora, quando a vacina chegou e se percebe que não cura, culpadas são as pessoas (indeterminadas) que saem de casa para se encontrarem com o vírus ou que convidam o vírus cada almoçar, já que a maioria dos contágios – dizem – ocorrem em casa.

(Continua)

A sexta e última parte deste artigo está disponível aqui.

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