Os deméritos da meritocracia e os autoritarismos

A presidência da Assembleia da República, no tempo da troika, manifestou desejo de dar visibilidade aos problemas prisionais. O actual Presidente da República prometeu acabar com os sem abrigo em Lisboa, numa legislatura. O primeiro-ministro da geringonça prometera criar as condições de haver oferta de médico de família para todos os que o quisessem. A pretexto das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, as autoridades prometem assegurar habitação condigna para todos. A ONU tem vindo a inscrever uma série de objectivos do milénio, o primeiro dos quais é a erradicação da pobreza.

Porque é que os políticos fazem promessas que não conseguem cumprir? Porque é que as pessoas mais bem preparadas e mais apoiadas são, afinal, ignorantes das suas possibilidades e reais poderes?

Uma resposta está agora em moda, em competição entre as universidades de Yale e de Harvard, entre Markovits (2019) e Sandel (2020): ambos criticam o critério do mérito. Não é tão benévolo quanto parece, ao contrário do que estamos convencidos. O mérito, apesar de parecer o contrário do nepotismo, da corrupção, dos privilégios, traz problemas graves para a vida das elites, dos trabalhadores e dos excluídos. Promove privilégios difíceis de compatibilizar com a democracia.

O debate é de primeira importância. As campanhas bem-sucedidas de Donald Trump (ou Bolsonaro ou Brexit), estigmatizando com sucesso as elites escolarizadas, revelaram os ressentimentos das classes médias e trabalhadoras produzidos nas escolas e universidades, e pelas distinções sociais promovidas pelos processos de certificação e reconhecimento de competências profissionais. As elites norte-americanas discutem explicitamente de que modo a organização da meritocracia, uma das bases da legitimação do seu próprio poder, não é contraproducente para o bem comum e para a vida pessoal das próprias elites.

Grupos de elite, em segredo, pagam lições privadas a cientistas reconhecidos para aprenderem como podem planear viver em algum conforto e segurança nas próximas décadas, dadas a previsões catastróficas a respeito dos fenómenos atmosféricos extremos que surgem sem aviso e dos desastres sociais que estão a pôr as populações em movimento. Outros, crentes no valor da pró-actividade humana, conscientes das vantagens de trabalhar em sociedade, mas desconfiados das políticas de educação e avaliação estarem a ser mais problemas que soluções para os dilemas da vida, propõem-se passar a reconhecer com certificados escolares o valor do trabalho das pessoas a quem não tem sido reconhecido mérito.

Um dos grandes méritos destes dois professores citados é saberem do que falam. Atiram-se ao ensino, e em especial ao ensino superior. Não se referem negativamente apenas ao ensino pobre e desmoralizante das periferias sociais. Referem-se também ao ensino rico e quase perfeito de que eles são ilustres autores e beneficiários. É como se nos dissessem: descobrimos que o que estamos a fazer na universidade e, possivelmente, é mais mau do que bom. Entendem que o papel de liderança intelectual e universitária passa pela denuncia das armadilhas e da tirania da organização social que os fez verem reconhecidos os seus méritos pessoais como excepcionalmente valiosos.

Vale a pena insistir nisto: o grande mérito destas pessoas de méritos reconhecidos é usarem esse reconhecimento e esses méritos para estudar o modo como os trabalhos em que estão envolvidos é mais contraproducente do que benéfico para os seus alunos e para a sociedade.

Voltando ao princípio da conversa: a má fama dos políticos não é uma notícia recente (Oborne, 2008). Há muito tempo que os políticos, a pretexto de servirem o discurso único – a optimização do mérito nas decisões políticas –, têm alimentado a ideia vulgar de serem aldrabões, corruptos, ao serviço de interesses diferentes daqueles que declaram publicamente. A lista de promessas incumpridas só compete com a lista de decisões tomadas ao arrepio das discussões públicas informadas. O ideal de democracia propagado em tempo eleitoral contrasta com as decisões anti-populares dos eleitos em exercício de funções. A reacção neo-nazi-fascista mostra e decorre do estado de degradação dos valores democráticos.

A crítica do mérito abre-nos uma perspectiva sobre o que está a acontecer. Os políticos estão cheios de si – de ambição pelo poder legitimado pelo mérito – e cegam-se a si mesmos a respeito da sua enorme ignorância guiada, afinal, por interesses de curto prazo dos seus próximos. Os factos não impedem os políticos de se julgarem, nada humildemente, como sendo de uma estirpe acima do comum dos mortais, semeando pérolas a porcos.

Os dois autores citados mostraram caminhos para se sair da lógica das mentiras que se alimentam mutuamente, na grande ignorância própria da arrogância isolacionista da política actual. Tomar a soberba como um grave erro, e descer à terra onde as pessoas comuns vivem e se cuidam entre si, pode ser uma síntese do que propõem aos seus colegas e aos outros responsáveis pelas sociedades em que vivemos.

Os populistas estão a capitalizar votos e apoios na medida em que as pessoas comuns odeiam a soberba estupidez das elites. O papão do populismo – de facto, o neo-nazifascismo emergente por todo o lado anunciado por Freitas do Amaral (2003), há 20 anos, referindo-se à política de guerra de George W. Bush – tem servido para justificar a continuação das propostas democratas que fingem que se preocupam com os pobres, mas mantém a degradação do meio ambiente, o desrespeito pelos direitos humanos, a falta de qualidade do estado de direito, os recuos dos direitos sociais, agindo em sentido inverso do que anunciam.

Chegámos ao ponto desesperante da guerra híbrida nos ter invadido as casas, qual simulação da Guerra Fria, primeiro a respeito do vírus chinês e depois a respeito do fantasma soviético sob as ordens do Putin, impondo-nos silenciar toda a crítica aos serviços de saúde e à NATO em nome da defesa da liberdade de expressão. As críticas mais incómodas passaram a ser confundidas com traição aos valores democráticos, alinhamento com a morte ou os inimigos.

Se há decisões políticas que jamais foram democráticas foram as decisões de avançar para a guerra, seja ela sanitária ou militar. A primeira vítima, nesses casos, é a verdade, sufocada por densos segredos e mentiras de estado.

Se Putin tem intenção de reduzir o âmbito de actuação das democracias, no Ocidente, como parece que tem quando apoia os movimentos políticos neo-nazi-fascistas, a sua derrota será conseguida se no pós-guerra as práticas democráticas, na comunicação social e na ciência, passarem decisivamente a ser dominantes, em vez das fake news e da difusão do medo.

 

Referências:

Amaral, D. F. do. (2003). Do 11 de Setembro à crise do Iraque. Bertrand.

Markovits, D. (2019). The Meritocracy Trap: How America’s Foundational Myth Feeds Inequality, Dismantles the Middle Class, and Devours the Elite. Allen Lane & Penguin Books.

Oborne, P. (2008). The Triumph of the Political Class. Pocket Books.

Sandel, M.J. (2020). The Tyranny of Merit. Penguin Books.

 

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