Desenvolver a Arte de Perguntar: Será Bom Voltar ao Normal?

Plastic Waste

Acabei de ver Planet of Humans, de Jeff Gibbs e Michael Moore. Diz que a economia verde é pouco mais do que uma maneira do capitalismo se renovar, continuando a destruir mais as condições da nossa existência, enquanto humanos que vivem desta maneira, e continuando a acreditar que a necessidade aguça o engenho e, portanto, a tecnologia irá dar as respostas que precisarmos a cada momento.

Não deixa muita margem de manobra às ilusões sobre os movimentos ecologistas, severamente comprometidos com cumplicidades que ou são reconhecidas ou não o são, mas estão documentadas em financiamentos mais do que suspeitos: tóxicos.

Uma esperança que não foi tratada, embora surja no filme, através manifestantes, é a ciência. A mesma ciência de que nos falou, esperançosa, uma cientista portuguesa. “É preciso coragem para mudar, sobretudo quando o nosso estilo de vida atual é tão confortável”, escreveu, com toda a razão. Quase no fim escreve: “Para o avanço da ciência não há temas de investigação inúteis, desde que as perguntas sejam bem formuladas”.

A esperança de Maria do Carmo Fonseca, que partilho, é que aprendamos com a ciência a estabelecer as boas perguntas, independentes de critérios de utilidade, para que nos instruamos sobre o que fazer. Esta esperança é muito diferente, eu diria é o oposto, da esperança dos que dizem depositar na educação a sua esperança.

Nas escolas, incluindo as escolas superiores, o que se ensina e o que se aprende, segundo um regime de oferta educativa e procura de formação profissional, são as respostas que há pré-fabricadas, não as perguntas, científicas ou de outro tipo. As perguntas ecológicas que animam a imaginação das crianças e jovens são poderosas: resultado de quatro décadas de ensino. Quatro décadas em que a ecologia foi tratada como um incómodo pelos poderes políticas, conhecedores e negadores das alterações climáticas em curso. O documentário argumenta que a imaginação das novas gerações obrigou e permitiu alguns dos investidores inovadores a usarem as tecnologias verdes, ainda que mantendo a dependência das fontes fósseis de energia, por serem elas a garantia que conhecem para realizar os seus esquemas de acumulação exorbitante de riqueza, ideologia dominante e indiscutível para todos os partidos políticos. A economia verde é apresentada como uma solução disponível e em curso para a sustentabilidade do nosso modo de vida, quando não o é. A ciência e a sua divulgação, durante 40 anos censurada com sucesso, ao menos no campo da ecologia, produziu gerações de pessoas preocupadas, mas incapazes de fazerem as perguntas certas na política.

Quais são as perguntas certas? São, por exemplo, como funciona a produção? No caso do filme, a produção de energia? Imaginamos dois mundos: o do petróleo e o natural, como se fossem ou pudessem ser dois mundos mutuamente excludentes. Quem nos ensinou isso senão a própria ciência, tal como ela é divulgada e organizada? Dividida em ciências naturais e ciências sociais e, dentro destas em disciplinas que vivem como se não se conhecessem umas às outras, por sua vez divididas em subdisciplinas hiperespecializadas: sabem tudo sobre um detalhe qualquer, sem saberem distinguir o que é relevante do que é o interesse particular.

Imaginamos a indústria como uma tecnologia de produção que não tem pessoas a trabalhar, potencialmente independente da sociedade e das pessoas: no filme aparecem apenas seguranças das empresas a garantir a privacidade do que se passa nas fábricas. Porém, patrões e trabalhadores cooperam para os fins que os investidores premeiam. A segurança serve para tornar difícil e ilegal produzir evidencias das mentiras construídas pela propaganda política e industrial que assegura os consumidores a continuarem a fazer aquilo que destrói o meio ambiente. E ainda há, mais importante que os seguranças, as teorias da conspiração: os peritos comprometidos com os interesses empresariais e que, como acontece com os espiões, na indústria ou na política, ocupam frequentemente lugares de destaque no campo adversário, como das ONG´s ambientais.

Desde há 40 anos que a ciência produziu os resultados capazes de avisar o mundo do aquecimento global, cujas consequências estamos hoje a sofrer. Para que serve a ciência se aquilo que os cientistas entendem ser certo é usado por alguns entre eles para ficarem ricos, ao serviço do capitalismo, negando aquilo que é o valor da ciência? Porque é que a ciência não se afirma, em vez de se deixar ludibriar por meia dúzia de mercenários intelectuais?

Isto só parece um círculo vicioso, impossível de superar, porque nos agarramos ao argumento de que cabe a alguém, que não nós, à tecnologia, à escola, à ciência, desfazer aquilo que fazemos, pessoalmente, todos os dias: trabalhar para as indústrias que nos pagam as despesas, na condição de ficarmos calados sobre aquilo que sabemos serem os resultados práticos daquilo que fazemos.

Estamos numa situação de reacção à pandemia do COVID 19. Experimentámos um alívio temporário da tensão ecológica criada pela actividade humana, e, tal como os presos nas cadeias, o nosso maior desejo em comum é voltar à normalidade, à situação de partida, em alegada liberdade: mais do que aceitar, desejamos voltar a trabalhar para fazer crescer a economia, seja lá isso o que for, desde que dê dinheiro para voltarmos aos supermercados e aos centros comerciais, pagar a casa e o carro.

É verdade que não estamos em condições de fazer a revolução. Mas quem disse que a revolução resolveria algum problema? Estamos, isso sim, em situação de criar a solidariedade entre todos, de modo a que quem esteja em dificuldades para sobreviver com dignidade possa, desde já, recusar empregos que sejam prejudiciais ao bem-estar geral: rendimento básico incondicional de todos para todos.

A liberdade de escolha de ocupação é fundamental para que, ao menos aqueles que tenham consciência ecológica ou consciência anti-extrativista ou consciência anti-capitalista, se recusem, com a ajuda de todos, em continuar a fazer o que temos todos vindo a fazer.

Esta nova liberdade – fundamental para contrapor aos avanços neo-nazi-fascistas – deverá estender-se também aos que continuaram a trabalhar, nas tecnologias, nas escolas, na ciência, nos serviços essenciais. Em vez de pedirmos respostas chave na mão, a clientes, empregadores, estudantes, investigadores, devemos passar a requerer o fornecimento de perguntas, a quem esteja por dentro do modo como funcionam as tecnologias, as empresas, os negócios, para que não sejamos soterrados pelo nosso próprio lixo.    

 

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