A experiência da epidemia COVID-19 mostrou duas fragilidades estruturais das sociedades modernas, a saber, a pobreza e a velhice. Embora a doença se tenha tornado uma pandemia por ter sido transmitida pelas classes de pessoas que viajam de avião, foram aqueles que não viajam, os pobres e os idosos asilados, os que mais sofrem com a doença.
Numa pandemia interagem factores biológicos, a partir do convívio indispensável, inevitável e em evolução dos vírus e das espécies vivas, e os factores sociais, a partir dos canais de trânsito (abertos e fechados) de pessoas, animais e materiais (Urry, 2007). Mais do que globalização, o que está em acção é o planeta (Szerszynski, 2016). As ciências sociais, tal como as conhecemos, ficam mudas perante a necessidade de pensar o modo como as tecnologias de mobilidade, incluindo o arroteamento de terras que põe em contacto a vida selvagem com as cidades, os cuidados de saúde institucionalizados, são, ou não, favoráveis à vida e saúde humanas (Latour, 2007). São ainda incapazes de ter em conta a evolução da vida na Terra (Clark & Szerszynski, 2020).
Fruto do processo de especialização profissional e cognitiva intensa organizado no pós-guerra, as ciências aceleraram de forma centrípeta (Dores, 2021), como tecnociências, representando-se, a par dos discursos únicos, como receitas profissionais, optimizadas e dispersas para problemas específicos identificados. Desatentas dos estudos conceptuais sobre os panos de fundo, os substractos universais (Schofield, 2018), como o são os objectos de estudo da saúde pública, as ciências foram surpreendidas pela epidemia COVID19, todavia previsível e anunciada (Gates, 2015).
O subdesenvolvimento das disciplinas de saúde pública revelado pela pandemia não é outro, mas o mesmo, do subdesenvolvimento das ciências económicas (Skidelsky, 2018), das ciências sociais em geral (Kuhn, 2016; Mouzelis, 1995) e das próprias ciências (Prigogine, 1996; Schofield, 2018). A hiperespecialização disciplinar das ciências para fins de formação vocacional e profissional faz do espírito científico ensinado nas escolas uma apologia dos dogmas úteis ao status quo e uma censura incorporada às evidências incómodas, como a pobreza, a velhice, os sacrifícios dos trabalhadores e das sociedades em prol de actividades económicas lucrativas, as práticas genocidas e de extinção da diversidade da vida, em nome de uma alegada guerra contra a natureza e contra grupos humanos estigmatizados, apresentados como emocionais, irracionais, subdesenvolvidos, frequentemente incorrigíveis, demasiado próximos do inimigo, do mal, das florestas que representam, no imaginário moderno, ao mesmo tempo, o perigo, o desconhecido e a aventura viril e romântica.
A comunicação social de referência, apanhada desprevenida pela pandemia, apressada e desastradamente teve de se reorganizar como máquina de propaganda das políticas de globalização, de que depende. Transitou da rotina paulatinamente criada da centralidade do discurso propagandístico financeiro para a impreparação de um discurso de legitimação centrado na saúde pública. Impreparação dos profissionais da saúde pública, improdutivos para as elites que vivem dos lucros (a menos das práticas de vacinação inovadoras), praticantes de uma ciência subdesenvolvida por depender da conjugação de múltiplos factores tecnológicos, naturais, sociais, separados e incompatibilizados entre si pela profissionalização competitiva das diferentes subdisciplinas centrípetas. Impreparação igualmente dos jornalistas para pensarem de forma centrífuga, isto é, construindo perguntas para estimular o entendimento do desconhecido e dando à experiência o tempo necessário para que a verdade venha ao de cima, como na slow science. Os media recorreram a epidemiologistas, a virologistas, a médicos de clínica geral, à ordem dos médicos, sem questionarem os conflitos de interesses e os interesses empresariais, incluindo ou sobretudo os envolvidos na ONU e na Organização Mundial da Saúde. Sem a experiência de décadas que ganharam os especialistas em finanças na apresentação pública dos interesses que representam, os jornais, alimentados pelas estatísticas de saúde do ministério, fizeram propaganda da bondade dos poderes do estado, hospitalares e policiais, com uma chuva de terror noticioso que dura há meses sobre os idosos mortos e em risco de serem mortos pelos seus familiares e amigos, evitando questionar o evidente: são as vidas de trabalho insano que fragilizam mais uns idosos do que outros, sobretudo aqueles que ficam sem recursos para se acolherem sós, quando perdem a autonomia, aos cuidados de quem, profissional, é chamado a manifestar emoções de amor que só alguns familiares estão realmente em condições de viver e transmitir.
A escassez de sabedoria das sociedades modernas é escamoteada pelas ciências centrípetas, muito orgulhosas das suas misteriosas competências profissionais mais ou menos mágicas e secretas, como a capacidade jamais demonstrada de o crescimento resolver os problemas da pobreza ou de os tratados comerciais evitarem as guerras ou das estatísticas representarem a verdade. A perversidade dessa escassa sabedoria manifesta-se de modo ao mesmo tempo horrível e censório ao implicar as principais vítimas da pandemia, os pobres e os velhos, com as circunstâncias que fazem deles alvos preferenciais da doença, a saber a falta de condições dignas de vida e a subordinação à mobilização das forças de trabalho para servir a exploração do planeta e dos seus recursos, incluindo os recursos humanos. Quanto à dignidade com que se vive e morre, aparentemente ninguém está interessado. Tendo mesmo sido decretado ser possível impedir os parentes e amigos dos defuntos de os acompanhar em cerimónias fúnebres, aquelas que os arqueólogos dizem distinguir os seres humanos dos outros animais.
Referências:
Clark, N., & Szerszynski, B. (2020). Planetary Social Thought: The Anthropocene Challenge to the Social Sciences. Polity Press.
Dores, A. P. (2021). Que fazer? Amadurecer o espírito científico. Lisbon International Press, no prelo.
Gates, B. (2015). The next outbreak? We´re not ready. TED Talks.
Kuhn, M. (2016). How the Social Sciences Think about the World´s Social – Outline of a Critique. Ibidem.
Latour, B. (2007). Changer de société, refaire de la sociologie. La Découverte.
Mouzelis, N. (1995). Sociological Theory: What Went Wrong? – diagnosis and remedies. Routledge.
Prigogine, I. (1996). O Fim das Certezas. Gradiva.
Schofield, J. (2018). The Real Philosophy of Science. Smashwords.
Skidelsky, R. (2018). Money and Government, a challange to mainstream economics. Penguin Books.
Szerszynski, B. (2016). Planetary mobilities: movement, memory and emergence in the body of the Earth. Mobilities, 11(4).
Urry, J. (2007). Mobilities. Polity Press.
Uma resposta
Excelente texto, amigo António. Os meus parabéns.