
Donald Trump foi o motor da participação do maior número de votantes da história dos EUA. Antes dele, eram menos os que se interessavam por política, no sentido de acompanhar campanhas políticas e votar. A nossa sorte, o azar dele e dos seus seguidores, foi que a mobilização de votantes do lado do seu adversário político foi maior.
A democracia norte americana foi questionada aquando da primeira eleição de George W. Bush, em 2000. A decisão foi contestada. A fragilidade da contagem dos votos foi evidente. Em 2003 os EUA, com apoio dos aliados imperiais ocidentais, o Reino Unido e a Espanha, declararam, nos Açores, uma guerra indeterminada contra inimigos incertos, que todos presumiram ser os muçulmanos. Nada como uma boa guerra para mobilizar politicamente as populações em torno de um império. “Quem não está connosco está contra nós!”
O que aconteceu cinco anos mais tarde, a falência do sistema financeiro global incapaz de oferecer habitações aos norte-americanos com menos recursos, ajuda a entender a razão da declaração da guerra de civilizações, a nova cruzada como o próprio presidente Bush a designou antes de ser corrigido pelos assessores de propaganda.
Toda a narrativa da globalização afundou, desde o início. A benévola e humanitária exportação das indústrias e da democracia para os países em desenvolvimento, impondo um mundo meritocrático e competitivo, de liberdade e oportunidades iguais, em que aos mais capazes (países e profissionais) seriam oferecidas as oportunidades para ajudar o resto do mundo, revelou-se uma máscara do império. Por todo o mundo, os estados – que, segundo a narrativa oficial, deveriam estar a desaparecer de cena, pelo menos da vida económica, substituídos pelos bancos centrais independentes que confiavam nos banqueiros como agentes últimos da confiança – foram chamados a evitar os “riscos sistémicos”. De facto, em vez de mudarem o sistema que faliu sem competição, os políticos e os eleitores dominantes, viciados no discurso único, na tecnocracia que assegurava que a economia era uma ciência e a ciência era um cardápio de receitas únicas e infalíveis, preferiram manter tudo como estava, só que um pouco mais desigual ainda: os ricos continuaram a ficar mais ricos e os pobres mais pobres.
Em 2001 surgiu o Fórum Social Mundial, para contrapor e criticar o Fórum Económico Mundial das elites mais proactivas e inovadoras. Dez anos depois foram a Primavera Árabe, os Indignados, o Occupy Wall Street, movimentos democráticos que igualmente foram insuficientes para renovar a democracia. Quem teve sucesso foram os movimentos anti-democráticos que tomaram o poder de estados como a Índia, Filipinas, Polónia, Hungria e também EUA, em 2016. Nesse ano, o candidato social democrata do partido Democrata, o velho senador Bernie Sanders, foi tropeado pelo seu aparelho partidário, acusado de proto-comunismo ou populista por querer uma revolução capaz de oferecer direito à saúde a todos os norte-americanos. No partido Republicano, foi escolhido mais um idiota para ir a eleições e, para surpresa do próprio, ganhou-as.
Compreende-se o entusiasmo de uma parte do norte-americanos a quem foi prometido voltar ao passado, à América das oportunidades para os trabalhadores, ainda que fossem representados por um palhaço. As acusações de fascismo, como acontece em todo o ocidente, assustam muito menos do que as acusações de comunismo. Isso pode ser verdade para os eleitores, mas é certamente verdade para as elites e para os aparelhos partidários. De democracia dos trabalhadores não querem ouvir falar. É preferível poderem falar com um Trump, a quem as suas hostes obedecem, do que confrontarem-se com a miscelânea de reivindicações e ideias que saem das assembleias populares e que evoluem rapidamente: nunca estão satisfeitas.
Em 2020, o partido Democrata voltou a torpedear o Sanders, ainda que os movimentos sociais e os jovens se tenham envolvido na democracia e eleito brilhantes mulheres deputadas, admiradas em todo o mundo. Também esse partido preferiu apostar num retorno ao passado, à memória do primeiro presidente não branco e às mulheres em posição de comando, para que tudo possa voltar ao normal.
Estamos em plena pandemia COVID-19. O trunfo eleitoral de Trump era a recuperação económica nos EUA. Tudo se revelou um castelo de cartas perante os confinamentos sanitários. Como também se revelou a estupidez e a insensibilidade do palhaço de serviço. Viciado nas redes sociais, apostou em negar a existência da pandemia, em provar na prática o valor da negação da ciência, em trazer as teorias da conspiração ignaras para o centro das conspirações políticas reais. Foi seguido, em todo o mundo, pela internacional que, entretanto, formara, com destaque para o seu homólogo brasileiro. Infelizmente, a pandemia é real. Mas safou-nos do Trump por via eleitoral. Há males que vêm por bem.
Desesperadamente estúpido, para nossa sorte colectiva, o Trump continuou nas redes sociais, nesse mundo paralelo em que se usam as letras com ódio, caixote do lixo do politicamente incorrecto que alivia a bílis de milhões de potenciais votantes frustrados, imaginando-se capazes de agir. Na perspectiva do desemprego e de deixar de ter imunidade judicial, ao sair da Casa Branca, tinha boas razões para acompanhar o desespero que se instiga pelas redes sociais. Tentou um golpe de estado. Imaginou que o império era apenas defendido pela polícia do Capitólio. Imaginou que o povo americano se sublevaria sem organização militar ou imaginou que a organização militar dos Proud Boys era a sério. Como acontece sempre e em todo o lado, alguns polícias, frequentemente em lugares de chefia, sentem-se amigos e respeitados pelos mafiosos e bandoleiros das milícias de extrema-direita, de que as polícias historicamente são sucedâneas institucionalizados. As mortes das vítimas da insurreição apalhaçada ficam para a história.
Infelizmente, passados trinta anos da implosão das democracias populares e vinte anos de crise evidente das democracias ocidentais, embora a estupidez do Trump tenha oferecido à democracia mais um tempo para se reorganizar, nenhuma discussão política ou sequer académica está em curso para se construir uma democracia de futuro, adaptada às necessidades dos combates contra as mudanças climáticas, contra a intrusões da privacidade e da autonomia das pessoas, contra as restrições artificiais e desumanas à mobilidade e à liberdade, contra a desumanidade das instituições de apoio social – incluindo escolas e sistemas de saúde, contra o uso das guerras pelas elites. Os eleitores continuam a não se querer envolver com a porca da política: preferem oferecer-se para todo o serviço, como profissionais, em troca de uma vida de consumos. Não acreditam e escondem que a maioria das pessoas não têm essas oportunidades e cada vez há menos oportunidades e mais pessoas.
Precisamos de uma democracia capaz de reconhecer, finalmente, a existência do império, de um modo de organizar de aspirações globais, manipulador dos estados, das economias e das sociedades como instrumentos de exploração da natureza, incluindo dos seus recursos, como os recursos humanos. Por que razão temos de ficar à espera do que os partidos e os eleitores norte-americanos fazem para saber quem vai conduzir o império durante os próximos 4 anos? Por que razão temos de ficar à espera dos partidos e eleitores alemães para saber como vamos viver na União Europeia nos próximos anos? Por que razão temos de nos resignar às estratégias das elites globais, que já escolheram o PC chinês e o seu estado ditatorial para guiar os destinos do mundo nas próximas décadas?