Reeducar o século XXI

“Para que me serve saber de fragmentos – ter informação (…) – se isso não me dá a esperança de sabedoria – conhecimento (…)?”, auto-citação dos comentários de Será possível reeducar o século XXI?

 

Após 20 anos a estudar prisões, aprendi que aquilo que já sabia era bastante mais importante do que aquilo que imaginava no início.

Comecei a estudar prisões porque li um artigo de jornal de um preso que denunciava a corrupção vigente nas prisões. Escrevi-lhe uma carta a dizer que a sua caracterização das prisões correspondia àquilo que se vive também na sociedade em geral. O meu interlocutor, António Alte Pinho, convidou-me para colaborar num trabalho cívico de denúncia sistemática do que se passava nas prisões. A esta distância, apesar das perseguições de que fomos alvo, dos incómodos que causámos, dos companheiros de luta que encontrámos, de raros resultados positivos na vida de raras pessoas, aprendi que a indiferença generalizada com que as sociedades recebem as notícias sobre recorrentes crimes institucionais nas prisões – que os escândalos ocasionais e as reformas prisionais não alteram – essa indiferença se deve ao facto de os cidadãos também estarem presos (Boétie, 1997; Dores, 2018), embora o pátio fora das prisões seja maior.

Percebi logo de início que a corrupção, dentro e fora das prisões, era a mesma. Iludi-me pelo facto de acreditar que eu era mais livre para a combater. Não percebi, então, que a minha liberdade pessoal e social é indissociável da liberdade oficialmente sequestrada dos presos. Percebo-o agora.

E compreendo também porque é que os meus colegas, os meus alunos, os meus leitores, têm dificuldade em aprender aquilo que eu aprendi: para o fazer, para aceitar que o destino aprisionado de cada um de nós e o dos presos é o mesmo, é preciso admitir a nossa desprotecção fundamental perante a vida e a natureza. É preciso não acreditar em nada, por assim dizer.

Ainda que seja apenas um esforço intelectual, sem consequências imediatas na prática, protegemo-nos compreensivelmente de aceitar que estamos intimamente dependentes daquilo que não temos modo de controlar. Do mesmo modo que há quem se suicide por receio de morrer, a humanidade, paulatinamente, tem-se vindo a entregar a uma rede global de estados que nos tratam da saúde, em troca do nosso trabalho na exploração da Terra. A ciência moderna, por exemplo, reduz-se à sua versão pragmática e utilitária de formação de empregabilidades profissionais e, embora não possa evitar os devaneios, condena-os, evita-os, censura-os e isola-os.

Socialmente, acreditamos piamente que o estado e a ciência nos protegem da parte selvagem da natureza, como os desastres naturais ou as pandemias. Por isso, estamos desarmados perante a sucessão de desastres que nos acometem, como a guerra, a falência do sistema financeiro global, o retorno dos neofascistas à política, o confinamento universal para lidar com uma pandemia: como os presos, não somos donos dos nossos destinos, entregues à guarda dos estados e das suas ciências.

A geração mais educada de sempre está inerte perante estados e ciências exploradoras da Terra e dos seus recursos, incluindo os recursos humanos. Imaginamo-nos donos da Terra e trabalhamos como recursos das elites para a sua exploração. Sabemos hoje que isso é desastroso e que os sucessivos desastres naturais são, afinal, provocados pela acção humana. Porém, somos incapazes de fazer outra coisa que não seja aquilo que temos feito nas últimas décadas: criar stress na Terra, extinguir espécies de vida, arriscar o mesmo destino para a humanidade. Estamos presos e somos os nossos próprios carcereiros, orientados por estados e escolas perversas que todos conhecemos e a que todos prestamos homenagem.

Tornei-me sociólogo abolicionista, sociólogo e cidadão que se nega a si próprio sem vergonha, consciente de ser, como toda a gente, um colaborador da exploração da Terra. Como dizem os alcoólicos anónimos, sou doente sem remissão. Ao contrário deles, não posso manter-me abstémio: participa na sociedade exploradora todos os dias. O que posso fazer é sujeitar-me a um regime de reeducação. Como me diz a experiência dos ex-presos, o mais certo é voltar ao mesmo, situação de que nunca saí de facto. Mas a esperança é a última a morrer…

Então, escrevi um livro para “Reeducar o século XXI”, apelo à participação dos leitores no sentido de se libertarem dos estados e das ciências que nos orientam de maneiras tão manifestamente perversas. A sugestão não é a de mobilizar uma guerra. Dessas já há muito. Ao invés, a sugestão é a de identificarmos aquilo que já sabemos e que não valorizamos por nos acobardarmos perante o poder: estamos presos por ele e não temos de ter vergonha de nos querermos libertar.

Porque trabalho em ciências sociais, a minha esperança refere-se ao modo como elas se podem tornar verdadeiras ciências através da ciência centrífuga, uma estratégia que já se pratica de libertação da ciência, mas que os estados e as escolas censuram, negam e escondem.

São as escolas e os estados que limitam as nossas pessoas a reduzirem-se a indivíduos. Formados para trabalhar como recursos humanos na exploração da Terra, os indivíduos depositam, à força, confiança no ensino e no estado, na esperança de que garantam às nossas famílias (e não a toda a humanidade) segurança contra as investidas da natureza, imaginada nossa inimiga. Defesa dos próprios estados, quando fazem guerras ou prendem pessoas ou estão indiferentes ou cúmplices face à miséria.

Vivemos assim em resultado de chantagens emocionais, de isolamento social, e não de clareza de espírito partilhada. Entendemos, geralmente, o trabalho como sacrifício, porque sabemos estar a sacrificar a Terra. Sacrificamos alguns de nós (muitos de nós) quando os enviamos para a guerra, para as prisões, para servi em profissões, para ter boa consciência enquanto fazemos o que vamos fazendo, delegando responsabilidades nos superiores, nas hierarquias que nos traem como pessoas e espécie viva.

Será possível reeducar o século XXI? O que posso oferecer a este respeito são algumas sugestões de pensamento e acção a quem ler o livro. Para ler mais notas sobre o assunto ver “Apresentação e discussão dos livros”.

 

Referências:

Boétie, L. (1997). Discurso Sobre a Servidão Voluntária (Antígona (ed.)), escrito em 1563.

Dores, A. P. (2018). Presos são eles; presos estamos nós. Revista Eletrônica Da Faculdade de Direito Da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), 4(1), 13–46.

 

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Uma resposta

  1. O texto do António aborda com certeza uma série de pontos da maior importância, a começar pela noção de que estamos todos presos, uns mais que outros evidentemente. Talvez o termo mais adequado seja “condicionados”, visto os condicionamentos estarem por todo o lado. Na raiz desta situação, o António evoca o Império que culpa igualmente e muito bem pela emergência ecológica relacionada com a oposição ou até guerra entre homem e natureza.
    Creio que a visão do Império assim apresentada e como é comum aos académicos, pode fazer passar a ideia de que se trata de algo muito abstrato, vago, difuso, mas nada poderia estar mais longe da verdade. O Império é uma realidade muito concreta e palpável, pois é constituído por sistemas, organizações e homens de carne osso, reais e objectivos, como objectivas são as suas actuações entre nós. Senão vejamos:
    No topo da pirâmide encontramos duas corporações, a Vanguard e a BlackRock, as maiores firmas de gestão financeira do mundo que formam uma espécie de monopólio reservado que possui quase tudo o que existe, desde o Big Pharma às empresas mediáticas e muitas outras companhias e grupos.
    A maioria das acções de todas as grandes companhias estão na posse daquele restrito grupo de investidores institucionais, significando por exemplo que marcas que aparentemente competem entre si, como a Pepsi e a C.Cola, são detidas pelos mesmos fundos de investimento especulativo, seguradoras e bancos.
    Os activos dos pequenos investidores são propriedade de investidores maiores e os destes por outros ainda maiores, até chegarmos ao nível mais elevado onde pontificam os dois gigantes referidos, os quais, segundo a Bloomberg, gerem em conjunto fortunas superiores a $ 20 triliões (dados de 2018).
    Os donos da Vanguard são grandes apologistas do GREAT RESET e do seu essencial objectivo de transferência total da riqueza e propriedade das mãos dos muitos para as mãos dos muito poucos. Interessantíssimo também é o facto de a Vanguard ser o maior accionista da BlackRock e ter uma estrutura accionista intrincada que torna difícil discernir a sua propriedade. É possuída por vários fundos que por sua vez são propriedade de outros accionistas, destacando-se algumas das famílias mais ricas do mundo. Destas podemos destacar a Rotchild Investment Corporation e a Edmond De Rotchild Holding, seguidos da família Orsini, família Bush, família real britânica, família DuPont, Morgans, Rockefellers, etc.
    Segundo fontes de Wall St., a BlackRock e a Vanguard são os maiores accionistas da GlaxoSmithKline, Pfizer e outras grandes farmacêuticas. Ambas são igualmente maioritárias no capital do NY Times, Time Warner, Comcast, Disney e News Coporation, os gigantes dos media que controlam 90% da paisagem mediática americana. Assim, o mundo corporativo parece um intrincado labirinto onde todos se possuem uns aos outros. Ainda mais decisivo é que ambos os gigantes trabalham em estreita ligação com a RF e alguns dos maiores bancos. Ao todo, possuem 1600 das maiores empresas do mundo com vendas combinadas de $9 triliões. Se a estes dois lhes juntarmos a que vem em 3º lugar, a State Street, temos um trio que controla 90% de todas as maiores cotadas no S&P 500, incluindo os 4 grandes gigantes das plataformas tecnológicas Amazon, Apple, Microsoft e FB.
    Não admira portanto que a narrativa do C-19 seja aquela “versão única da verdade” que todos os dias nos é apresentada servilmente pelas elites e media submissos a tal poder.

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