A guerra da Ucrânia e a guerra dos professores e do pessoal de saúde

Magalhães Godinho identificou a tensão estratégica na Europa e em Portugal: o serviço às potências continentais versus os interesses das potências marítimas por cá dominantes a partir da decisão de avançar com as navegações, a ponto de em 1640 nos termos tornado independentes de Espanha e em 1807 a capital, para não ficar nas mãos de Napoleão, ter fugido para o Rio de Janeiro. Mais recentemente Michael Hudson formulou o mesmo problema sob a perspectiva económica na era do capitalismo: a luta entre o investimento industrial e os saques rentistas, entre a produção e a retirada de capital financeiro da economia produtiva, entre o trabalho e a pirataria.

Por toda a parte emergem dois partidos em disputa: os globalistas, democráticos e elitistas, hegemónicos até à falência das promessas da globalização, a aldeia global, tipo Fukuyama, e os da guerra de civilizações, tipo Huntington, populistas e com vontade de reformar à força as instituições. Como pano de fundo há o desejo das pessoas de evitar que tudo continue a apodrecer, sem terem instrumentos para agir a não ser protestar nas redes sociais ou nas ruas.

O défice democrático na União Europeia aprofunda-se com a crescente importância estratégica da guerra, de vida ou de morte para as elites dominantes. O governo alemão, a contragosto, finalmente cedeu aos EUA e romperam com a Federação Russa. Foi humilhado pela sabotagem física do gasoduto que ligaria a Rússia à Alemanha realizada secretamente pelos seus aliados. O resto da UE acompanha a evolução dos acontecimentos juntinha ao governo alemão, unida nas hesitações. As instituições europeias, essas não hesitam em tomar partido pelo partido marítimo e globalista, pirata e anti-trabalhista. Tornaram-se mesmo fundamentalistas, ansiosas, na defesa do seu papel em risco de ser riscado do mapa quando mudar o partido dominante, o que pode acontecer em dois anos, nas próximas eleições norte-americanas (ou de outro modo).

O desespero das elites é compreensível. Como revela de forma embaraçante a vida profissional de Durão Barroso, a subordinação da UE aos EUA é umbilical. A UE funciona como embaixada dos EUA e da NATO no continente euroasiático. Disfarçada de aliança defensiva, avança pelo continente cercado por bases militares norte-americanas, num cerco a que a liderança da Federação Russa reagiu, orgulhosa do seu velho império.

A verdadeira questão na guerra não é saber quem tem razão. Que venha o Diabo e escolha. A razão será decidida pela história, quer dizer, pelos vencedores. Moralmente, numa guerra ninguém tem razão, evidentemente. Politicamente, como a história recente de Portugal mostra, o orgulho imperial derrotado facilmente se transforma para acomodar os vencedores. As elites não querem acabar com a guerra porque não querem respeitar ou parecer respeitar os povos. Querem ameaçá-los.

A guerra dos professores, como a guerra do Solnado, para já, parece não ter nada a haver com a outra. Trata-se de pedir para que não seja o governo a continuar a faltar-lhes – a faltar-nos – ao respeito. Razões não faltam. Mas, nem os professores tinham percebido que tinham razão antes de imaginarem para si mesmos uma vitória que os colocasse na história dos vencedores. Ninguém sabe bem como isso aconteceu. A verdade é que muitos professores ocuparam parte destes últimos anos a imaginar que teriam, de facto, direito à carreira que legalmente ainda é a sua, mas na prática deixou de o ser faz muitos anos. Alguns imaginaram que poderiam protestar em conjunto com os outros profissionais das escolas, de outra maneira, exigindo respeito também para os auxiliares de educação.

Manifestação da CGTP pela subida de salários e pensões, Lisboa, 9 de Fevereiro de 2023, crédito da foto: José Manuel Teixeira

O governo cioso de boas contas, i.e., tão aflito como os outros governos na UE para servir quem o protege, o partido globalista, os financiadores, a “redução do deficit”, não pode ceder aos professores. Está na mesmíssima posição que esteve o governo fascista com a guerra perdida na Guiné: se negociasse, os movimentos de libertação de Angola e Moçambique caiam-lhe em cima. Como disse o ministro das finanças, há também o pessoal de saúde e outros na fila de espera. E o dinheiro está marcado para ser gasto em despesas não estruturais, como os prémios e outros saques distribuídos entre os serviçais das elites, cujas notícias tanto têm incomodado o governo recentemente.

Na política dos salões, claro, não há lugar para considerar estados de espírito das pessoas comuns. A novidade destes protestos dos professores é que são internacionais. Acontecem ao mesmo tempo pelo menos em França e em Inglaterra, depois de terem sido vitoriosos nos EUA anos atrás. E são interprofissionais: emerge uma solidariedade entre diferentes lutas por melhores condições de vida que se irão consolidar e crescer precisamente porque os servidores das elites sabem que se falharem agora perante de quem eles dependem serão despedidos.

Quando ouvirem os representantes não eleitos que conduzem a UE dizer que as sanções tiveram efeitos devastadores para a Rússia e não afectaram o ocidente tenham em conta que quem assim fala representa um partido dominante que falhou as suas metas e procura, através da guerra, mobilizar povos uns contra os outros, profissões umas contra as outras, para continuar enquanto for possível a sacar o que for possível, conscientes de que isso não pode durar muito mais como está. Num salto para a frente, a guerra e os inimigos são formas políticas bem conhecidas de ameaçar e esgotar as forças sociais e populares.

Em breve, as pessoas comuns serão chamadas a intervir politicamente. Perante dois impérios que se digladiam e dois partidos que se querem reconstruir (em continuidade ou em ruptura) na liderança, as profissões e as pessoas serão abandonadas à sua sorte e pressionadas para escolherem um dos lados e calar. As elites submetidas à tarraxa financeira que alegadamente nos haveria de libertar, mas subjuga, continuam a esperar que os impérios sobrevivam, mesmo à guerra atómica. Cabe à humanidade, casa tenha imaginação para sair vitoriosa desta encruzilhada, humanizar-se, isto é, negar qualquer apoio a qualquer império e a qualquer guerra. Todo o apoio aos professores, pessoal de saúde e respectivos auxiliares.

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2 respostas

  1. Mas na Ucrânia luta- se contra o império, pelo direito à liberdade.
    O que não se entende é que a ONU nao tenha expulso da sua casa quem atenta contra as suas normas. Isso a mim faz- me interrogar sobre o papel desse organismo e muita confusao com o modo como se trata um país invasor.
    Não sei como o globalismo está interconectafo vom esta guerra.Tenho tentado perceber esse ponto de visra mas não consigo. Se há um invasor que já antes anexou territorio na Georgia e na Ucrânia esta guerra nao aconteceu por picardias ou falta de inteligência. Ela estava calculada e projectada por alguém que não me parece terem sifo os globalistas. Por muito que seja contra a globalização qie só serviubpara nos colocar tofos a médio prazo servos da China.

    1. Tem razão, Maria. Na Ucrânia, como na Rússia, afinal por toda a parte, há quem lute contra o império. Mas não serão as chefias militares – de que lado estejam – quem luta contra o império. Os representantes militares dos impérios conflituantes e concorrentes são especialistas no uso da força, altamente condicionados para reclamar sacrifícios dos tropas e das populações. Eles próprios escapam como podem aos sacrifícios de vida, apoiados nos interesses “civis” que os dirigem.
      A liberdade de morrer e matar é, de momento, a liberdade mais presente na Ucrânia. Antes da invasão russa, a liberdade também não era aquilo que melhor caracterizava a vida dos e sobretudo das ucranianas – a Ucrânia era o supermercado mundial de barrigas de alugar, um dos países mais corruptos do mundo em que os opositores ao governo e algumas populações eram tratados como inimigos e presos ou atacados militarmente. A Ucrânia estava tutelada por três potenciais mundiais – a Alemanha, a França e a Rússia – sob os acordos de Minsk, para resolver da melhor maneira a questão. As coisas correram bastante mal. Quando as populações se revoltaram contra a corrupção e o governo, chamada revolução de Maidan, não tiveram a sorte que os portugueses tiveram no 25 de Abril de 1974. No nosso caso, a NATO decidiu não intervir. O contrário aconteceu na Ucrânia, com apoio da União Europeia e dos EUA, a que os governos alemães e franceses tentaram resistir – e ainda tentam – sem sucesso.
      O império russo é mau: isso é evidente faz muitos anos. Do império ocidental pode dizer-se o mesmo. Quem aspira a ser livre e a que a liberdade vingue deve evitar escolher entre dois males, sob pena de esvaziar o significado da palavra liberdade. Quem luta pela liberdade está hoje, manifestamente, em grandes dificuldades.

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