O ímpeto de converter um parlamento democrático numa câmara corporativa de minorias alegadamente sub-representadas, assenta na imperdoável farsa de designar o individuo como natural representante de um grupo ou auto-afirmada identidade, sem que nenhum voto democraticamente apreciável o haja designado como tal.
Os partidos foram a votos em outubro e nunca o futuro dos que almejam serem condignamente representados no parlamento português, em vésperas eleitorais, se afigurou tão sombrio. O propalado debate sobre a separação de poderes incidente na independência do ministério público, olvida um absoluta dependência entre os poderes legislativos e executivos, na qual os governos reincidentes assentam para reforçar o seu domínio sobre a casa da democracia. Obedecendo a critérios obscuros, ou pelo menos alheias ao eleitorado, as organizações que tutelam a democracia preparam-se para nos brindar com listas baças e fechadas, repletas de desconhecidos e ignorados pelo eleitor. Selecionados dentro de quatro paredes, dentro de quatro anos, podemos questionar o cidadão médio sobre quantos dos seus mandantes parlamentares conhece nome ou trabalho; As respostas permitir-nos-ão averiguar até que ponto os mecanismos de representação formal são ou não eficientes.
Enquanto os partidos dimensionados tomam preferências a fim de satisfazer a sua imensa máquina interna, os Partidos pequenos – sem máquina a satisfazer – convertem a apresentação de propostos num prenúncio programático. Ao caso, a pleonástica Mariana Mortágua elencando a docente Dr. Beatriz Dias, como candidata presumivelmente elegível, emocionou-se: “Uma mulher negra, afrodescendente”.
Ao contrário do que pretende fazer crer o Bloco, o parlamento português está longe de ser monocromático. Em legislaturas passadas, pontificaram deputados de ascendência Angolana (Hélder Amaral), Guineense (Fernando Ka), e cabo-verdeana; Mulheres (Celeste Correia) e Homens (Manuel Correia); dirigentes de ascendência indo-asiática, tanto à esquerda (João Cravinho) como à Direita (Natália Carrascalão). Nem na confissão religiosa o historial parlamentar parece homogéneo – incluiu como deputado Narana Coissoró, praticante Hindu – nem precisávamos de recuar a ciclos pretéritos para demonstrar a falácia Bloquista – No mandato que terminou em Outubro último, o parlamento português contou com a participação da Professora Universitária Nilza de Sena, deputada desde 2011 e cabeça de lista em 2015 na complicada candidatura da PAF ao círculo eleitoral do distrito de Beja.

Não escrevo “complicada” porque a parlamentar nasceu em Moçambique; muito menos por ser mulher. Escrevo por haver concorrido num círculo eleitoral onde, antes de 2011, o seu Partido não elegia um deputado desde Cavaco Silva; Por ser mais desafiante fazê-lo numa região pobre (o poder de compra per capita é 35 % inferior ao de Lisboa e 16 % inferior ao da média nacional), rural (a densidade populacional é a mais baixa do país, 56 vezes inferior à Lisboeta) e inacessível (é um dos três distritos que não possui autoestrada, apesar de ser o maior, i.e., aquele que contempla a maior área – 4 vezes superior a Lisboa e quase 13 vezes superior ao da Madeira, o circulo eleitoral mais pequeno ); e por liderar a candidatura, dando a cara pela coligação.
Esse detalhe não é displicente, pois numa votação apreciada à luz do método d’hont, a hierarquia dos lugares é fulcral e uma prova de reconhecimento por parte dos Partidos. A título de exemplo, aquando da sua primeira eleição, tanto a Professora Nilza de Sena como a Drª. Beatriz Dias foram candidatas legislativas – A primeira no também complicado circulo de Coimbra (Até à legislatura transacta, a Direita não vencia no distrito há 20 anos) e a segunda na capital onde o Bloco sempre elegeu parlamentares. Todavia, enquanto a cientista política ocupava o 3º lugar da lista havendo sido eleita, o Bloco apenas confiara o 8º lugar à activista anti-racismo que se quedou aquém da indigitação. Oito anos depois, suspeito que a direção do Bloco ignore a deputada em funções dada a sua indicação ter a autoria de Pedro Passos Coelho, então presidente do PSD e consabido racista.

Desde a proposta dos censos – reprovada pelo INE – que me parece óbvio existir uma intenção encapotada de estabelecer quotas raciais em futuras eleições legislativas. Ela fora confessada por Miguel Vale de Almeida na sua entrevista ao Podcast “Perguntar Não Ofende” e está subentendida no estudo doutoral do sociólogo e dirigente do Bloco de Esquerda João Mineiro, “O parlamento por dentro”. Diz-se destinado a combater o racismo. Racismo verificado em episódios como o da esquadra de Alfragide ou dos percalços no bairro do Jamaica. E antevendo os intuitos do Professor e seus compagnons de route, novas quotas deverão ser organizadas para representar os portugueses mediante a orientação sexual (a fim de combater a homofobia), a identidade de género (a fim de combater a transfobia) e o credo religioso (a fim de combater a islamofobia).
Não recordo, todavia, partido ou grupo parlamentar que se escusasse de repudiar os acontecimentos supracitados. A sociedade portuguesa e os seus representantes políticos, são – Deo gratias – unânimes na condenação do racismo. O parlamento não carece de não-caucasianos para que essa temática seja liminar.
Todos o reconhecem, mas temem confessá-lo. Temem ser identificados como racistas, se o fizerem. Talvez por isso, em declarações ao Público, apenas Hélder Amaral confessou: Não quer ser “A voz dos luso-africanos”. Outorgar esse papel ao deputado centrista, é tão discriminatório como negar-lhe um lugar parlamentar. Aqueles que perante a pobreza do Jamaica encontraram na sua raiz uma sub-representação étnica, desautorizam os representantes políticos eleitos – nacionais (deputados do distrito de Setúbal) e locais (autarcas do concelho do Seixal e da freguesia da Amora) – em função da sua etnia, incorrendo num preconceito racista.

Vou mesmo mais longe: A ideia de que apenas um afrodescendente pode mandatar um afrodescendente, é uma ideia ultrajante. As regras parlamentares, elaboradas no sentido de limitar a capacidade de escolha de um eleitorado quanto a quem desejam que os represente, são sempre – mesmo quando elaboradas com a melhor das intenções – avessas ao espírito da democracia.
À sua luz e da constituição que não legitima os círculos uninominais, o eleitor aprecia medidas e prioriza programas. Imaginar o contrário, é uma forma de o deslegitimar. O ímpeto de converter um parlamento democrático numa câmara corporativa de minorias alegadamente sub-representadas, assenta na imperdoável farsa de designar o individuo como natural representante de um grupo ou auto-afirmada identidade, sem que nenhum voto democraticamente apreciável o haja designado como tal. Os defensores do seccionamento parlamentar, assumem que um homossexual profundamente estatista se fará representar por Adolfo Mesquita Nunes apesar dos seus ideais liberais ou que uma aficionada tauromáquica está melhor representada por Inês Sousa-Real pois ambas são mulheres. Para muitas finalidades, nomeadamente do debate de ideias, é mais saudável existir um parlamento segmentado em função dos programas partidários mesmo que, há superfície, pareça homogéneo.

Todas as formas de aplicação de quotas produziram efeitos perversos no exercício democrático. As quotas de sexo prejudicaram a democracia interna nos partidos que a adotaram, dificultando a criação de correntes alternativas e minorando a pluralidade de ideias. Uma medida semelhante a respeito da etnia, obrigaria à filiação massiva de afrodescendentes (et al) no seio dos Partidos, correndo o risco de que uma minoria de afrodescendentes com actividade partidária determinassem quais as listas que podem ou não ser elaboradas.
A sua transposição para os órgãos de estado seria ainda mais aterradora. Ademais o hediondo exercício de caracterizar a população nacional à luz da raça – um conceito que o Ocidente civilizado fez questão de extinguir – as novas regras eleitorais estabeleceriam um Numerus clausus de cidadãos identificados com uma etnia, necessários para estabelecer a respetiva quota. Em simultâneo, as regras estanques que impedem (nos termos do artigo 151º da CRP) um cidadão de concorrer em mais do que um círculo eleitoral, teriam de ser perpassadas para o novo sistema de quotas rácicas, proibindo o individuo exogenamente identificado com uma raça, de ser candidato numa lista (putativamente a maior) de caucasianos.
No limiar, se os censos contabilizassem os portugueses descendentes de goeses como em número inferior a 45 mil (um duzentos e trinta avos da população portuguesa) o primeiro ministro ficaria juridicamente impossibilitado de concorrer a um lugar parlamentar nas próximas eleições legislativas (o que não seria mau de todo).

A pesporrência com que Mamadou Ba – funcionário do Bloco de Esquerda – aborda a necessidade de representação racial, faz-me pressupor que Ba se julga capaz de assumir essa representação. Sobre os confrontos posteriores ao Jamaica, escreveu-se que a distância do bairro Seixalense à avenida da liberdade nunca havia sido tão extensa. E no entanto, durante os anos da prosperidade angolana, as boutiques de luxo da avenida da liberdade portavam secções específicas para os multimilionários austrais. Entre os vários enviesamentos produzidos pelas quotas, não é impossível antevermos um plutocrata dessa região, portador de dupla nacionalidade, usurpando uma quota de representação racial para usufruir da protecção diplomática Portuguesa. Nunca faltou criatividade aos que quiseram obliquar o sistema.

Os laivos de racismo escavados dos subterrâneos onde habitam grupelhos desprezíveis (e em vias de extinção) não torna Portugal num país racista. Por optimismo, prefiro alavancar-me na estatística do Global Peace Index 2018, que nos classifica como o 3º país mais seguro do mundo. Em grande parte, devemo-lo a uma demografia, a cultura e a política nacionais que não dão espaço a incidentes como os que assolaram Baltimore em 2015 ou em Charllotesville em 2017. Assim, tentação de importar quezílias estrangeiras e estranhas à nossa vivência societária, é sempre uma alternativa preguiçosa à construção de um programa político focado nas realidades portuguesas e a resolver os problemas dos Portugueses.
Mesmo para aqueles que bebem a sua percepção do mundo através da internet e das redes sociais, a nossa era é a era pós-racial da presidência de Obama e do papado de Bergoglio. Nas primárias republicanas de 2016 concorreram o neurocirurgião Bem Carson (Afrodescendente) e o senador Marco Rubio (filho de imigrantes Cubanos). As primárias democratas de 2020 tiveram Bernie Sanders (filho de Judeus) e Andrew Young (filho de Chineses). Fervoroso da contenda e dos mencionados, agradeci que o tema não o fosse e possamos retirar boas lições do exemplo Americano, assim como respeitante à independência da representação parlamentar face aos executivos e às máquinas partidárias.