Sociedade do conhecimento

Marcuse, Foucault, Illich e nós

O progresso para o socialismo, que esteve inscrito na constituição portuguesa de 1976, foi substituído pelo progresso científico e tecnológico, como perspetiva de desenvolvimento social e político. Críticos das tecnologias políticas, industriais, sociais, como Foucault, Marcuse, Illich, foram esquecidos pelos debates intelectuais. Nenhum deles apresentou uma perspectiva sobre o que fazer, no tempo da falência anunciada dos socialismos.

A sociedade do conhecimento foi uma perspectiva positiva, de esperança, com base naquilo que esses autores denunciavam como desumano. A curta história da palavra de ordem adoptada pela União Europeia surgiu de uma inovação estrutural surgida nos EUA. A ciência ao serviço dos militares norte-americanos produziu o computador e, mais tarde, a internet. Por sistema, os resultados práticos dessa ciência são entregues à iniciativa privada próxima do estado, como aconteceu à IBM. O sucesso dos computadores foi de tal ordem que levou esta empresa a substituir a sua publicidade negativa junto das administrações de empresas – dizendo que as máquinas eram mais baratas do que pagar os salários de funcionários que faziam o mesmo trabalho, menos perfeito, e podiam fazer greves – por publicidade positiva: a sociedade da informação tornou-se a substituta do socialismo, no imaginário político progressista.

A União Europeia, ainda com outro nome, deveria participar naquilo que se viria a chamar globalização: exportação das indústrias para países em desenvolvimento, com salários muito baixos e regimes autoritários que minimizassem os efeitos das greves, ficando sob o controlo directo das potencias ocidentais a informação, a gestão, a administração à distância de todo o processo, de que o sistema financeiro global era a pedra de toque.

A sociedade do conhecimento criou, explicou Robert Reich (1991), uma nova classe dominante: a dos analistas simbólicos, profissionais altamente qualificados a trabalhar em instâncias internacionais a produzir relatórios peritos em orientar a acção das empresas e estados empenhados na globalização. Os Ronaldos da economia, do direito e das finanças, exploradores do dumping social, tecnológico e político entre os diferentes países e dentro de cada país.

Como exclamou Warren Buffett, de maneira que se tornou famosa: “há uma luta de classes, sim, mas é a minha classe, a dos ricos, que a está a organizar e estamos a ganhá-la.” Isso acontece porque os analistas simbólicos são as armas da sociedade do conhecimento, na verdade sociedade da informação em que apenas se pode tomar conhecimento daquilo que interessa às classes dominantes.

Os analistas simbólicos são pessoas formadas nas melhores universidades, que servem de bitola para todas as outras através de um sistema de avaliação global produtivista do trabalho dos cientistas e professores, de modo a que quem cultive a sabedoria fica de fora do sistema de produção de conhecimentos. A grande aspiração de qualquer universitário é poder ser útil à humanidade, isto é, fazer projectos de investigação ou ser contratado para participar na sociedade do conhecimento.

Não é preciso haver censura, como acontecia nos anos setenta, para conter os opositores. O excesso de informação, as fake news, a mistura centrípeta de conhecimentos e propaganda, não apenas na comunicação social, mas também nas universidades, está a tornar a meta-informação mais importante do que os conhecimentos que vêm nos livros. Todos sabemos disso porque sabemos das torturas a que estão sujeitos Manning, Assange, Snowden, grandes mestres manipuladores de meta-informação a partir da oposição. Todos sabemos disso porque não temos informação quotidiana dos estragos humanos produzidos pelos drones assassinos às ordens do presidente dos EUA (Schahill, 2015). Todos sabemos disso porque a manipulação de resultados eleitorais e o controlo bio-político de cada um de nós, através dos nossos telemóveis, parecem inelutáveis (Peirano, 2019). Todos sabemos disso desde o momento em que foi possível organizar globalmente a primeira quarentena de pessoas sadias da história da humanidade: o conhecimento industrializado por computadores tem-nos isolado e reduzido a seres impotentes. Impotentes face aos riscos ambientais e face aos poderes superlativos, utópicos, sem lugar onde os procurar e responsabilizar. Impotentes por estarmos enganados quanto ao que é o conhecimento, como o conhecimento científico, financeiro ou epidemiológico, com que os políticos alegam estar a defender-nos do mal, quando faltam à verdade de modo descontrolado.

A perspectiva de uma sociedade do conhecimento, como motivo europeu para dar prestígio à subordinação estratégica à globalização do capital, refreando brutalmente, de forma desumana, a livre circulação de pessoas, falhou com a globalização, mas persiste, pois mesmo os críticos desesperados recomendam mais educação e ciência como esperanças para um dia se sair da crise que insiste em estar connosco, pelo menos desde 2001, quando a esperança de um mundo sem guerra se esfumou, desde 2008, quando a esperança de um mundo sem crises financeiras se esfumou, desde 2020, quando a falência das políticas de manutenção do doente comatoso foi maquilhada por uma crise pandémica que se não foi inventada – e não terá sido – veio muito a propósito para que tudo possa ficar na mesma.

A extraordinária efervescência ocidental que se seguiu a mais um assassinato de um afro-americano pela polícia, nos EUA, no quadro de efervescências igualmente extraordinárias em curso, localizadas em Hong Kong, Índia, Chile, Bolívia, Equador, Colômbia, Espanha, França, República Tcheca, Rússia, Malta, Argélia, Iraque, Irã, Líbano,Sudão, e outros lugares, em 2019, mostra que não é possível manter a farsa do progresso do conhecimento. O racismo e a corrupção, em particular nas polícias, suscitam revisões da história feita não por historiadores ou políticos, mas por ataques a estátuas expostas em lugares públicos. São, quem sabe, estes movimentos que irão resgatar as sociedades ocidentais dos riscos de ressurgimento dos neo-nazi-fascismos. Pelo menos, alguns grupos de gente dessa sentiu o toque e saiu à rua para tentar ter mão na situação.

É tempo de revisitar Marcuse, Foucault, Illich, lendo-os nos avisos que fizeram à nossa crendice na navegação das elites, alegadamente informadas com conhecimentos universais. Devemos ter em conta que o que eles possam ter previsto de mau já se concretizou, deixaram de ser teorias. Cabe-nos a nós tirar proveito da sua sabedoria não para os entronizar e fazer cursos escolares, mas reconhecer que algo de errado se passa com as tecnologias, as oposições, os saberes profissionais, os ensinos escolares e universitários, que nos deixam impotentes da cabeça e só parece ser possível agir irracionalmente, a favor ou contra a polícia, votando neo-nazi-fascista ou organizando movimentos de massas para reclamar direitos formalmente existentes mas espezinhados quotidianamente pelas autoridades.

Referências:

Foucault, M. (1994). Dits et Écrits 1954 – 1988. Gallimard.

Illich, I. (2018). Para uma História das Necessidades (J. C. C. Marques (ed.)). Edições Sempre-em-pé.

Marcuse, H. (1991). One-Dimension Man ([1964]). Routledge & Kegan.

Peirano, M. (2019). El enemigo conoce el sistema. Debate.

Reich, R. B. (1991). O Trabalho das Nações. Quetzal.

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