Com o fim da guerra do Afeganistão e da guerra de civilizações de Bush filho, a perspectiva de uma segunda Guerra Fria, desta vez entre os EUA e a China, suscita diversas reacções, como a do presidente mexicano, López Obrador, que se ofereceu para se aliar a Washington, em troca de um tratamento não colonial entre os dois países.
Também ao nível simbólico surgem propostas, como a da abolição da prisão de Guantanamo, símbolo da degradação moral e jurídica que conduziu a guerra de civilizações, a nova cruzada, guerra ao terror dos inimigos para justificar o terrorismo de estado (Schahill, 2015). Tal proposta deve ser avaliada contra outras, de maior profundidade, como as da abolição da pena de morte, da prisão perpétua, da tortura, da polícia, das prisões, que surgem de vários quadrantes, como a Amnista Internacional, a Pastoral Carcerária brasileira, movimentos feministas interseccionais, movimentos de acompanhamento das vidas dos presos, com impacto variável.
O valor social e político de cada abolição é diferente e relativo. Abolir Guantanamo significa abolir todos os abusos e ilegalidades que a sua existência representa, como a violação da convenção de Genebra sobre a guerra, o abuso de poder de usar território estrangeiro sem autorização, a denegação de justiça, a prática oficialmente organizada da tortura, a detenção sem acompanhamento judicial, etc.
Em sentido jurídico, fechar Guantanamo é abolir aquilo que não pode existir: um espaço organizado pelo estado (governo e forças armadas) em que ele se inibe de tomar conhecimento (judicial). Porém, tal prática é muito mais generalizada do que a que dela é feita em Guatanamo. Ela banalizou-se nas últimas décadas (Woodiwiss, 2001, 2005). A globalização desqualificou moralmente o direito, reduzindo a sua soberania de muitos modos. A respeito da transferência de responsabilidades financeiras sobre a falência do sistema financeiro global para os estados e para os impostos, houve constituições suspensas, como a portuguesa, para legitimar o aumento do saque aos contribuintes ao mesmo tempo que lhe eram reduzidos – nalguns casos abolidos – os rendimentos. Os tratados internacionais passaram a prever o recurso a tribunais arbitrais, sem recurso, por parte de empresas que entendiam terem sido prejudicadas por estados. As tentativas judiciais de alargar o âmbito das suas jurisdições, como aquela que prendeu Pinochet, foram abortadas.

Reclamar o fecho de Guantanamo não deve ignorar que essa prisão é apenas um epifenómeno de um problema mais geral de distribuição de poderes de soberania. De outro modo, o fecho de Guantanamo será o anúncio de uma vitória que iliba os seus promotores daquilo de que são responsáveis.
O presidente Obama, das duas vezes que se candidatou, fez campanha para fechar a prisão de Guantanamo, sem nunca o concretizar. Essa prisão é um dos símbolos internacionais da violação intencional, imperial, do direito internacional, do estado de direito e dos direitos humanos. Intenção imperial de que Obama foi um seguidor e arauto dissimulado, apoiado por um prémio Nobel da Paz, pelo politicamente correcto que criou a ficção de existir uma América pós-racista, pela mestria na conversa politiqueira, mas determinado a continuar a violação institucionalizada da moral e das leis internacionais, a nível económico, usando tratados leoninos de comércio e, a nível militar, como revelou o jornalistas norte-americano Jeremy Schahill (2015), premiado nos EUA pelo seu trabalho.
A subversão estratégica do estado de direito e dos direitos humanos por parte da direcção do império global não deve ser reduzida a Guantanamo. O ideal do fim da história e das ideologias, a alegada realização de um estádio civilizacional estacionário ao mesmo tempo paradisíaco e utópico, não deve inibir-nos de ver os contextos em que a tortura, por exemplo, pode ser legalizada.
A inesperada implosão da União Soviética e o fim da Guerra Fria, em 1989, e as eleições norte-americanas que deram a vitória a George W. Bush, em 2001, por cedência de Al Gore – o candidato derrotado – deixaram os EUA sem rumo a seguir. A euforia da vitória ocidental da Guerra Fria questionou se a constituição norte-americana ainda seria democrática. Premonitoriamente, perguntou-se como seria possível reagir constitucionalmente se o candidato derrotado exigisse mais rigor na contagem dos votos. (Em 2020, Trump haveria de retomar essas críticas e procurar fazê-las valer a seu favor). Esta questão, porém, não era meramente técnica. Tratava-se de saber se, com o fim da Guerra Fria e as possibilidades de votação electrónica, o arranjo constitucional que vigorou desde 1787, com a sua representação de estados e com a constituição de um colégio eleitoral, por exemplo, ainda seria aceitável para determinar quem seria o Presidente dos EUA.
Fragilizado pela sua eleição, sem rumo certo, George W. Bush lançou uma campanha nacionalista irracional e xenófoba no seu país e no mundo, utilizando o ataque terrorista às Torres Gémeas e ao Pentágono, em 11 de Setembro de 2001. Alegou direito de retaliação contra incertos, usou mentiras descaradas, atacou quem entendeu, arrastou os seus aliados e ameaçou todo o mundo. Em 2003 declarou, com o apoio da Grã-Bretanha e da Espanha, em território português, uma nova cruzada contra os terroristas muçulmanos e sem fim à vista. As guerras do Afeganistão e do Iraque são duas expressões dessa nova estratégia política desenhada para, segundo George W. Bush, enviar para tão longe quanto possível do território norte-americano a guerra.
Jeremy Schahill reportou sobre o modo como a subversão do estado de direito e da hierarquia das forças armadas foi organizada pelas sucessivas presidências para concretizar os objectivos estratégicos imperiais de continuar a fazer guerra em tempos que poderiam ter sido de paz.
Convém ter uma perspectiva de fundo clara sobre o que está a acontecer, quando se pedir o fecho da prisão de Guantanamo. Dar um fim ao símbolo mais conhecido da estratégia imperial anti-democrática e ilegal de abandonar o respeito pelos direitos humanos não salva nem a democracia, nem o estado de direito e, menos ainda, o respeito devido às pessoas.
A geopolítica e a moral sempre andaram em carris paralelos, nunca se tocaram. Qualquer análise moralista pretendendo afirmar ódio ao império pela sua imoralidade é um serviço ao império. É afirmar, sem o dizer, se fosse um padre ou um intelectual ou um moralista à frente do império o império seria benévolo. Isso é falso. O império vai construindo as suas instituições à medida das suas necessidades. Quando se esforça para abolir as organizações mais incómodas, como Guantanamo ou a guerra do Afeganistão, fá-lo por que isso é mais económico para manter as práticas instituídas – anti-democráticas, belicistas, de desrespeito pelo direito, como sansões e tratados de comércio. Destruir simbolicamente os símbolos usados para institucionalizar aquilo que agora é reconhecidamente quotidiano, como a tortura e os assassinatos por drones, é mais económico do que reconhecer e respeitar a vigência da legalidade internacional.
A realização da evidente justiça de fechar de Guatanamo não pode ser entendida como uma solução para a ideia de os EUA continuarem a desrespeitar os princípios da legalidade, dos direitos humanos, dos tribunais e da democracia. Como dizem os Zapatistas, de nada serve as desculpas quando as práticas abusivas continuam.
Referências:
Schahill, J. (2015). Guerras Sujas. Marcador.
Woodiwiss, M. (2001). Organized Crime and American Power: A History. University of Toronto Press.
Woodiwiss, M. (2005). Gangster Capitalism: The United States and the Global Rise of Organized Crime. Constable.
2 respostas
análise belíssima e, sobretudo, coerente.
Excelente texto do António que sigo na generalidade, embora eu defenda que Guantanamo tem de fechar mesmo, independentemente de tudo o resto. Vou até mais longe, pois é essencial acabar não apenas com a prisão, mas sobretudo com aquela base militar encastrada abusivamente num país soberano e cuja existência é uma vergonha.