Marcelo e os Segredos Sociais

Segredos sociais são o abuso sexual de crianças, a violência doméstica, os maus tratos de crianças, jovens e idosos institucionalizados, os serviços sociais prestados a pessoas em necessidade que as procuram controlar, mantendo-as em situação de necessidade ou agravando as situações. Os segredos sociais são fenómenos sociais de que as pessoas têm conhecimento, eventualmente testemunhando-os directamente, mas de que não tomam consciência responsabilizante. As pessoas têm a informação que lhes chega à mente, por via dos sentidos, porém não a processam como relevante. Na prática, os segredos sociais naturalizam as situações e tudo se passa como se não existissem. Como se as pessoas que vivem essas circunstâncias, incluindo vítimas e abusadores, não existissem.

A indiferença do governo de Passos Coelho relativamente ao aumento do sofrimento na sociedade portuguesa, no período da troika, dividiu os eleitores entre aqueles que compreenderam a necessidade de sofrer para penar os desmandos das décadas de opulência vivida a crédito e os que ficaram ressentidos pela dura sobranceria do governo.

Marcelo Rebelo de Sousa candidatou-se à presidência da república para cumprir um papel de reconciliação nacional, o que fez brilhantemente. Culminando na recepção consensual e positiva dos partidos ao discurso de 25 de Abril de 2021.

Apesar da sua reconhecida inteligência, argúcia política e emocionalidade cristã, Marcelo fracassou em erradicar os sem-abrigo e em combater a escravatura.

No caso dos sem-abrigo, foi ele mesmo quem trouxe o assunto à máxima prioridade na arena política. Foi também ele, com toda a lisura, quem reconheceu não ser possível – ao contrário do que imaginou quando pôs o assunto na agenda – erradicar os sem abrigo.

No caso da escravatura não foi ele quem trouxe o tema. Mas foi ele quem, fazendo uma campanha eleitoral para o segundo mandato contra o racismo e acompanhando o governo de forma próxima, obrigou o primeiro-ministro a conduzir de forma radical o escândalo de Odemira, mandando “fazer um novo 25 de Abril” ao seu ministro do interior, inibindo qualquer racismo que já estava a cavalgar os acontecimentos.

As populações cercadas em razão de medidas sanitárias apontaram o dedo aos imigrantes que vivem em condições desumanas, alguns sob regime considerado escravatura pelos alentejanos, pelos jornalistas e pelos comentadores. Entrou-se em síndrome de competição de indignação, como acontece nas redes sociais, para se esconder a anterior e pré-anunciada, para o futuro, continuada indiferença generalizada.

À lista de segredos sociais inicial, estamos em condições de acrescentar o fenómeno dos sem abrigo e dos escravos. Faz parte do argumentário de promoção dos segredos sociais e da indiferença social e política aos mesmos dizer que as vítimas gostam e nem admitem viver de outro modo senão nas condições desumanas em que vivem. Os sem abrigo não podem ser erradicados, alega-se, porque os cidadãos em Portugal são livres, isto é, já não é possível conduzi-los à prisão, como acontecia no tempo de Salazar (e em muitos países civilizados, há poucas décadas). Os escravos não são denunciados por razões semelhantes: todos – incluindo as pessoas escravizadas – beneficiam da situação, alegam os comentadores mais argutos.

Todos ouvimos dizer o mesmo das crianças abusadas, das mulheres violadas, dos idosos institucionalizados, dos ciganos e outras pessoas racializadas que recorrem aos miseráveis subsídios de sobrevivência. O gozo e a culpa são sobretudo das vítimas. Em contraste, os maiores beneficiários de subsídios de estado, incluindo as imparidades distribuídas no sector bancário, incluindo prémios por gestão com resultados negativos em instituições subsidiadas, são ouvidos no parlamento, para nojo nacional e humilhação da casa da democracia.

Herman José, a propósito do falecimento súbito de Maria João Abreu, disse que ninguém poderia alegar algum defeito ou maldade que pudesse justificar o destino abrupto com que perdeu a vida. Estava a referir-se a um dos processos psicológicos que estruturam os segredos sociais: se acontece aquilo de que se quer fazer segredo às pessoas é por que, de alguma maneira, as pessoas quiseram ou, ao menos, se puseram a jeito para que acontecesse. No caso da atriz, as más línguas – notou o humorista – iam ter dificuldade em encontrar chão. Teriam de se calar.

Em resumo: nem cada um, nem a sociedade têm a ver com o que acontece no mundo protegido pelo mecanismo do segredo social, como também é a morte. Os segredos sociais são anti-sociais e, ao mesmo tempo, representados pelas sociedades como raridades e existindo fora da sociedade. Não há nada a fazer. É como o Covid-19. É como as doenças que deixaram de ser tratadas por efeito da reorganização dos serviços de saúde para atender à COVID-19. É como as doenças mentais que nunca foram cuidadas como deveriam ser.

Não se sabe de onde veio nem para onde vai a COVID-19, mas sabe-se que a ciência deveria saber ou poderá um dia vir a saber. Entretanto, para driblar o segredo social da morte, os governos decidiram que deverá ser a ciência, isto é, os cientistas designados pelos governos e pelos jornalistas para poderem falar (não, claro, os cientistas negacionistas ou que aproveitam a situação para dizer mal), deverá ser a ciência a conduzir os políticos que a conduzem nos centros de investigação, nas universidades, ou, de modo delegado, nas farmacêuticas beneficiárias de contratos milionários, enquanto as desigualdades sociais desencobrem a miséria e a escravatura.

Combater os segredos sociais é possível. É até urgente, dada a convergência de crises de todo o tipo, que não param de revelar problemas estruturais, incluindo os criados pelas reformas estruturais das últimas décadas. Dos muitos segredos sociais que existem destaco dois, pelo seu impacto: o papel protector (discriminatório e explorador) dos estados modernos (Dores, 2020) e o papel cognitivo (elitista e desumano) das ciências (Dores, 2021).

Tais segredos sociais são tanto mais importantes e estruturantes quanto a generalidade dos críticos da situação acaba a propor ora a mobilização de um estado protector, ora a mobilização da educação científica, sem notar a indispensabilidade de um pensamento crítico sobre o estado e as ciências, imaginados irrealisticamente coisas boas fora da sociedade má. Como o maior cego é quem não quer ver, os segredos sociais que recobrem propagandisticamente os estados e as ciências devem ser dos primeiros a ser escalpelizados.

Marcelo não sabia, mas aprendeu que há segredos sociais. Ao contrário do que imaginava, apesar de ser profundo conhecedor do estado, das universidades e das últimas da ciência, é “impossível” erradicar os sem-abrigo e a escravatura. Sem-abrigo e escravos/as (como todas as vítimas dos segredos sociais) estão por toda a parte, confundidos/as na intimidade da população. População conscientemente alheada pela indiferença, incluindo os empresários que modernizam da agricultura e uberizam o emprego; incluindo os políticos melhor educados e informados.

Referências:

Dores, A. P. (2020). A Estado Social Real. RCP edições.

Dores, A. P. (2021). Reeducar o século XXI: libertar o espírito científico. Lisbon International Press.

 

 

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