Em ambiente de guerra, nada faz sentido – podemos apresentar um raciocínio e o seu exacto inverso, que ambos farão o mesmo sentido: nenhum. A guerra tem o condão raro de suspender toda a lógica, toda a racionalidade – isto é, de desumanizar a humanidade inteira.
No entanto, os meios de comunicação pululam de jornalistas e comentadores para quem existem guerras boas e guerras más – coisa que, lá está, não faz qualquer sentido, além de ser um perfeito exemplar de hipocrisia militante. Do ponto de vista da população em geral, não há guerras militares boas e más. Todas são más. Todas são insuportavelmente desumanas.
Já o mesmo não posso dizer da guerra de classes, que, essa sim, é justificável. Podem apostar que uma greve internacional nas fábricas de munições poria fim à guerra (a todas as guerras) muito mais depressa do que todas as «conversações de paz».
Os jornalistas e comentadores que agora (mais uma vez, depois do Kosovo, da ex-Jugoslávia, do Iraque, da Líbia, do Mali, …) servem de obediente gramofone à propaganda dos poderosos deste mundo para justificarem todos os tipos de guerras militares (umas «boas», outras «más») são uma cambada de hipócritas que hoje justificam a invasão do Iraque para amanhã a condenarem, conforme soprem os ventos da história. Não há perdão possível para essa gente que, em nome da «guerra boa», louva a atitude do presidente Zelensky e o promove a herói quando ele manda jovens sem treino militar para a frente de batalha, isto é, para uma morte certa e inglória; quando coloca artilharia no perímetro das cidades, tornando todos os civis sitting ducks; quando despacha vários milhões de mulheres, crianças e idosos para o Ocidente, num acto óbvio de chantagem emocional e económica sobre a União Europeia.
Não é possível tomar partido nesta guerra de invasão da Ucrânia, a não ser pela paz. Não é possível tomar partido nesta reconfiguração da ordem internacional a que estamos a assistir, a não ser pelo fim de todos os blocos militares («defensivos» ou não), pelo fim de todas as armas nucleares, contra os direitos de veto nas Nações Unidas, por uma nova ordem internacional de fraternidade, solidariedade e cooperação.
«A NATO, criada como organização defensiva, está a tornar-se, por pressão dos neo-cons americanos, uma ameaça à paz. Cuidado União Europeia!», a NATO «[tornou-se] um verdadeiro braço armado dos Estados Unidos», nomeadamente no «Cáucaso, [nas] zonas do Cáspio e do mar Negro e [nos] países limítrofes da Rússia Ocidental» – Mário Soares, «NATO: da defesa à ameaça», Visão, 11/09/2008.
Esses mesmos jornalistas que agora, com um ar muito inocente, perguntam aos seus entrevistados se a NATO não deveria intervir na Ucrânia, talvez daqui a 20 anos vamos encontrá-los a tecer-lhe duras críticas, como convém a todos os oportunistas.
Onde estavam os jornalistas e comentadores que agora louvam a «guerra boa» de Zelensky e diabolizam (e bem) a «guerra má» de Putin, quando a França enviou tropas para as suas ex-colónias? Onde estavam eles quando a França ocupou uma parte do Sahel e criou um enclave no Mali? Lembram-se de ver algum deles a pedir sanções para a França nas Nações Unidas?, a clamar pela sua exclusão da Comissão de Direitos Humanos? É que, ainda por cima, a retirada das tropas francesas ainda estava em curso quando as de Putin entraram na Ucrânia… (Mais esperto que o seu homólogo francês foi o presidente Biden, que retirou do Afeganistão a tempo de fazer figura de santinho face a uma eventual incursão russa na Ucrânia…)
Quando se admite a existência de uma qualquer guerra («boa» ou «má», tanto faz), entra-se forçosamente no caminho da hipocrisia. E a hipocrisia dos civis mata tanto quanto as balas dos militares, ainda que com menos sangue à vista.