O método de Hondt dificilmente produz uma maioria absoluta. Mas por cinco vezes, em vinte e duas, isso aconteceu em Portugal. E isso gerou uma má memória desses resultados, que António Costa, vencedor em 2022, se auto encarregou de desfazer nos próximos quatro anos.
Será isso possível? Como irá fazer para o conseguir?
Se o conseguir será um feito histórico. A probabilidade de o realizar é menor do que a de obter uma maioria absoluta com o método de Hondt. Inverter as práticas tradicionais no Portugal democrático será notado. Mas até agora nenhum sinal aponta nesse sentido.
A primeira maioria absoluta aconteceu em 1979. Completou uma legislatura que não chegou ao fim, bloqueado que ficou do governo de Mário Soares (PS em minoria). Constitui-se uma coligação pré-eleitoral precisamente com esse objectivo: atingir a maioria absoluta, e atingiu-a. Por imposição constitucional, realizaram-se novas eleições em 1980, agora para uma legislatura completa. Os eleitores confirmaram a mesma maioria absoluta, tendo sido ministro das finanças nessa operação Cavaco Silva, acusado pela oposição de despesismo eleitoralista para conseguir manter a Aliança Democrática (AD) no poder.
1980 é também o ano dos assassinatos ou mortes acidentais do primeiro-ministro, Sá Carneiro, do ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, e seus acompanhantes numa viagem de avião em campanha eleitoral para as presidenciais. Ferida, a AD não resistiu à crise financeira de 1983. Também não acabou a legislatura. Mário Soares, entretanto na oposição, dispôs-se a enfrentar a situação metendo o socialismo na gaveta e chamando pela segunda vez o FMI a Portugal (a primeira vez fora em 1977). Foi nomeado primeiro-ministro para gerir as dificuldades financeiras que bloquearam a AD, substituindo o governo das direitas pelo do bloco central (PS-PSD).
Mário Soares queixava-se, então, de que cabia sempre ao PS enfrentar as épocas dos constrangimentos financeiros de que o PSD escapava ou deixava para outros resolverem. O mesmo argumento é hoje usado, mas em sentido inverso. O despesismo passou a ser de esquerda e a dureza financeira de direita.
O maior apoio parlamentar de sempre, com o bloco central, foi mais uma vez interrompido. Cavaco Silva, feroz crítico da entrada e Portugal na CEE, tornou-se primeiro-ministro, em 1985, em nome do PSD. Durante dois anos – os da entrada de Portugal para a CEE – mudou de opinião e trabalhou para conseguir uma maioria absoluta, usando os fundos europeus. Em 1987, obteve a maioria que ambicionou e repetiu a dose em 1991, depois de clamar pela estabilidade e de cumprir uma legislatura completa.
A legislatura de maioria absoluta (1987-91) acabou com suspeitas de corrupção, o que não impediu a segunda maioria absoluta. Os eleitores que deram a maioria não estavam propriamente entusiasmados. Na verdade, parecia difícil encontrar quem, no quotidiano, se dispusesse a reconhecer que tinha votado pelos vencedores. As críticas ácidas que então circulavam a propósito de práticas financeiras que, infelizmente, mais tarde se vieram a confirmar, eram credíveis. Mas o argumento da estabilidade política para continuar a tirar proveito dos fundos europeus foi mais forte.
Em 2004, depois do discurso da tanga em 2002 (a inversão do argumento financeiro usado por Mário Soares anteriormente e modo de negar as promessas eleitorais, entre as quais a inversão da política de baixos salários) Durão Barroso abandonou o governo para servir a guerra de civilizações de Bush-Blair-Aznar na Comissão Europeia. 2004 foi também o ano do escândalo Caso Pia em que o PS se envolveu. O consulado de Santana Lopes, desastrado sucessor de Barroso, permitiu a reorganização do PS, liderado por José Sócrates, a quem em 2005 os eleitores ofereceram uma maioria absoluta. Apareceu como salvador da sanidade política e da moral pública, tomando por bodes expiatórios os professores, os juízes, os médicos, oferecidos à comunicação social condicionada pela tabloidização. Desta vez o PS iria ser duro, em contraste com o bom coração que levara António Guterres abandonar a política nacional.
A crise financeira global de 2008 pôs a nu não apenas as práticas dos governos de Cavaco Silva, mas também a sua réplica por parte do PS, no sector bancário e para lá dele. Foi aí que se descobriu que havia os Donos Disto Tudo.
Para António Costa reabilitar o prestígio das maiorias absolutas pode contar com a alegada fraca memória dos eleitores e sua tradicional cumplicidade política com os governantes que sacam: sacaram, em ditadura, os territórios imperiais. Em democracia, sacaram as dádivas da Europa. Governantes e eleitores partilham a mesma ânsia de subordinação e chico-espertice para partilhar as migalhas dos magnos saques imperiais.
O governo de Passos Coelho (2011-15), suportado por uma coligação pós-eleitoral maioritária, mostrou como é possível aceitar as humilhações políticas e pagar as dívidas dos vigaristas que em Portugal e no estrangeiro sacaram à sombra de partidos e governos. A União Europeia alegou superioridade moral e ela foi reconhecida pelo governo português. Quem queria ser grego? A geringonça, como passou a ser conhecida a maioria de esquerda que apoiou o governo minoritário do PS, contra esta humilhação, não rompeu com a subordinação, mas reconciliou os eleitores com as instituições democráticas.
Como se viu com os fogos de 2017, fenómeno ambiental extremo, a sociedade portuguesa continuava esmagada por corrupção nos serviços de protecção civil e nas autarquias locais. É certo que não se deve generalizar. Porém o conhecimento dos mesmos problemas que se multiplicam, sem se observar nenhuma reacção de surpresa ou de reparação por parte dos órgãos de soberania, que não conseguem acordar numa política anti-corrupção, tem sido usado pela extrema-direita para acusar o sistema e as elites de criminosas, com sucesso eleitoral.
É fácil acusar as maiorias absolutas de práticas autoritárias e corruptas que são, infelizmente, as marcas de água da nossa política e da nossa sociedade. De outro modo, como se compreenderia o avanço anunciado de partidos autoritários no ranking político a par da nova maioria absoluta, como a do PS em 2022. A actual maioria absoluta reúne em si o autoritarismo do PS de António Costa, que quis organizar sozinho a distribuição da bazuca europeia, tal como Cavaco Silva em 1987, negociando com a União Europeia sem grande alarido, por exemplo, a extracção de lítio contestada pelas populações e pelos ambientalistas, ou a controversa localização do aeroporto, ou os destinos da TAP, ou o que fazer em Sines.
António Costa diz que vai negociar a sua maioria absoluta. Não duvido que o fará com Bruxelas e com todos os parceiros nacionais que dela possa beneficiar. Mas será que vai negociar com os transmontanos e beirões que estão na iminência de ver as suas vidas destruídas pelas explorações que tem em mente instalar em Portugal? Será que se propõe interromper o ciclo de 40 anos de crescimento das desigualdades de rendimento e de desertificação do interior? Será que tem alguma ideia de como inibir a desertificação do país e reter em Portugal os trabalhadores jovens mais qualificados? Pode explicar a alguém o que tenciona fazer perante o aumento das despesas das dívidas públicas e privadas, dos juros, ou com as limitações dos investimentos previstos para evitar que o país continue vocacionado para estar na cauda da Europa, atrás de quem chegou depois?